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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O sagrado e o Profano

Precisamos que o sagrado esteja presente na nossa vida, mesmo que não tenhamos nada de religioso. E raramente paramos para perceber a influência que tem no nosso dia-a-dia, o que nos dá e o que nos traz.

1.

Diz quem sabe que o sagrado e o profano se distinguem pelas perspectivas diferenciadas do espaço e do tempo.

O espaço do sagrado é não homogéneo e o seu tempo, além desta mesma propriedade, goza de uma característica de descontinuidade que também não se verifica no domínio do profano.

O sagrado carece que os espaços sejam diferenciados, que alguns, poucos, apresentem uma qualidade própria que não só os tornam especiais como organizadores, e mesmo fundadores, de uma ordem de sentidos que criam a sua própria realidade. A partir daí assiste-se ao estabelecimento dos ritos, dos gestos exactos, dos locais de culto ou de peregrinação, por exemplo, que delimitam os territórios sagrados.

Por seu turno a descontinuidade temporal implica um investimento de períodos e épocas específicas. É legítimo afirmar que o tempo sagrado é reversível, já que tem de ser «um tempo mítico primordial tornado presente» (Eliade). Dito de outro modo, a inscrição num registo do sagrado retira-nos da normal (e profana) sequência de acontecimentos, e abre-nos as portas a uma temporalidade única em que eventuais repetições são, ainda assim, sempre novas formulações.

2.

Ainda que o sagrado e profano se misturem, se imbriquem, se completem e se derramem nas nossas vidas e nas nossas formas de ser e de fazer, o facto é que parecem conceitos difíceis, abstractos e longínquos.

Brincamos à Páscoa e ao Natal, aproveitamos feriados religiosos ou civis sem sombra de devoção nem conhecimento do que se actualiza ou comemora e, de forma geral, guardamos as nossas ideias sobre o divino num cofre confuso e atabalhoado de ideias ou imitamos preceitos estabelecidos e despidos de qualquer valor.

Se, por um lado, carecemos que o sagrado exista na nossa vida e penetre nos nossos quotidianos, mesmo que exteriormente a qualquer sentimento de religiosidade, o facto é que só por excepção reflectimos o que nos dá e o que nos traz.

Só por excepção nos deixamos envolver, afectiva e cognitivamente pela compreensão de que a nossa necessidade dele assenta directamente na vontade de significarmos quem somos e o que fazemos. Nós, uns entre outros na corrente das gerações infinitas.

Fonte: Revista Notícias Magazine

Texto/Autor: Isabel Leal, Psicóloga

Fotos da net

segunda-feira, 14 de março de 2022

Chover no molhado

“Repetimos e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentirmos confortáveis com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo, mesmo que o tudo seja infinitamente pouco, acarreta.”

Já se sabe que viver em sociedade é uma canseira. Que estamos sempre a começar de novo, a fazer os mesmos gestos, a repetir, como se tivesse graça, ou fosse engraçado, uns tantos chavões, umas tantas frases batidas, as queixas do costume e, já agora, porque não, a esperança idiota a que nos agarramos para sobreviver, os pequenos e grandes afectos que vamos sentindo e querendo sentir, no reconhecimento da dificuldade da estranheza e também do privilégio da existência.

Devemos quase todos ter vocação para chatos. De certeza. Deve ser daí que vem esta curiosa tendência para nos agarrarmos com unhas e dentes a umas tantas pessoas. Para demarcar um território que alindamos, em que nos refugiamos e a que chamamos nosso.

Para conseguir, entrar ano e sair ano, estamos horas em filas várias, esperando, esperando sempre. Para achar que é mesmo assim toda a gama de injustiças e bizarrias com que nos cruzamos, ou que vemos de longe entre a preguiça, a tentativa de indiferença e a mágoa fininha e entranhada.

Repetimos automaticamente tantos gestos que já nem é inquietante ligar o telefone duas vezes seguidas para a mesma pessoa e perguntar a mesma coisa ou lavar uma e outra vez os dentes em caso de dúvida. Repetimos e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentir confortáveis com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo, seja infinitamente pouco, acarreta.

De vez em quando, olhamos para trás e reparamos que passou muito tempo e estamos exactamente no mesmo sítio, com o mesmo discurso, as mesmas dificuldades, pessoas, medos e anseios. Ou, então, invade-nos a sensação de déjà-vu, descolamos de nós e penetramos num registo sensorial em que todas as impressões e imagens se repetem ou se rememoram.

Sempre as mesmas. Às vezes, só às vezes, afligimo-nos seriamente com aquilo a que chamamos rotina, com a estranha compulsão que nos conduz inexoravelmente a transformar novidades em hábitos, surpresas em expectativas, pessoas bonitas em homens invisíveis, momentos felizes em direitos adquiridos.

Às vezes, muito às vezes, damos conta que o tempo de que dispomos é limitado, que os seres que amamos não são eternos na disponibilidade e na presença, que os nossos pretensos adquiridos de desgastam e degradam como, alias, é suposto.

Por excepção, em momentos únicos e breves, damos conta que a chuva tem mesmo de cair no molhado e aproveitamos uma velha metáfora para significar outro dia .

Fonte: Revista Caras /Psicologia

Texto: Por Isabel Leal / Professora de Psicologia Clínica no ISPA

Fotos: Net

© Carlos Coelho

domingo, 14 de junho de 2020

Sombras



“Há uma espécie de vergonha em assumir para si mesmo que ‘tendo tudo para ser feliz’, afinal não se consegue chegar lá. Que há pequenos acontecimentos de outros tempos (…) que regressam ciclicamente à mente, os sonhos e influenciam o dia-a-dia.”

É ponto assente que os povos felizes não têm história. Ainda assim, suspeita-se da afirmação, ou pela descrença num qualquer estado de beatitude relativamente permanente a que se possa chamar de felicidade, ou pela circunstância de não se lobrigar onde estejam os tais povos sem história. Por demasiadas razões, provavelmente mais das pessoas que dos povos e mais individuais que colectivas, parece que a capacidade e o desejo de provocar acontecimentos, embarcar em ideias que têm consequências, viver emoções e significar os dias e a vida, chega e sobra para entrar numa especial corrente de tempo a que depois se chama história.

Mas a ideia da afirmação percebe-se: são os acontecimentos, a ausência de rupturas bruscas, a continuidade sem sobressaltos, o fluir dos dias de forma esperada e previsível que, ao não permitirem pontuações especiais, recordações especiais e comemorações especiais, anulam um qualquer carácter histórico.

Por qualquer razão, algumas pessoas dispõem-se a adaptar à sua dimensão esta frase bonita e a fazerem de conta que não têm história, que tudo o que sentiram e viveram era exactamente o esperado e adequado e que por isso, pelo facto de não terem história, são, têm de ser, felizes, ou pelo menos contentinhas. Como não provêm de famílias disfuncionais, não sofreram maus tratos nem negligências assinaláveis, nunca tiveram fome ou frio, não foram espancadas nem perseguidas, não passaram por guerras nem tiveram doenças graves, então aconteceu-lhes o mesmo que a toda a gente, sem mérito, sem história, sem narrativa possível nem razões e argumentos para invocar como justificação ou explicação compreensiva dos seus estados de infelicidade.

Por qualquer razão, há uma espécie de vergonha em assumir para si mesmo que “tendo tudo para ser feliz”, afinal não se consegue chegar lá. Que há pequenos acontecimentos de outros tempos, pequenas sensações do passado, minúsculos dizeres de pessoas que já desapareceram ou perderam importância, que regressam ciclicamente á mente, aos sonhos, e influenciam o dia-a-dia, como se tivessem importância.
Parece estranho que memórias antigas e lembranças, de estatuto e veracidade duvidosos, deixem lastro e penetrem todas as relações e, sobretudo, na capacidade de desfrutar, ou não, o que vai acontecendo.

Queira-se ou não, o que aconteceu e o que se sentiu é, à escala individual, a forma de mensuração do mundo. Mais acontecimentos, maior espectacularidade, não se traduz em maior sensibilidade ou emoção. Cada um tem a história que tem, e porque é a sua é, necessariamente, a de referência e a mais importante. Seguro mesmo é que as pessoas felizes têm história. E sabem que a têm.

Fonte: Revista Caras
Texto: Isabel Leal / professora de Psicologia Clinica no ISPA
Foto: net
© Carlos Coelho

sábado, 15 de outubro de 2016

Defesas


“A listagem dos mecanismos de defesa de que fazemos uso para enfrentar a vida e viver todos os dias é extensa, complexa e por vezes pouco compreendida.”

As pessoas, tal como os outros animais, as máquinas e praticamente todos os sistemas que construímos e inventamos, têm defesas. Estas defesas são de diferentes níveis. Umas dirigem-se ao meio envolvente, quer dizer, aos recursos de que fazemos uso para modificar o que à volta nos incomoda ou agride. É por exemplo o caso de evitarmos ir a um sítio ou colocarmo-nos numa situação que antevemos nos provoque sarilhos ou desconforto.
Mas há também, e talvez mais importante, as defesas internas, quer dizer, os recursos psicológicos que ao longo da vida vamos acumulando no sentido de nos protegermos em relação àquilo que nos faz mal. Estas defesas não são as mesmas para toda a gente. Alguns de nós fazemos de conta que não vemos ou percebemos situações potencialmente críticas. Aquela coisa típica de o marido ser sempre o último a saber prefigura um mecanismo de defesa bem afinado, em que o que desejamos interfere de tal forma no que percepcionamos que nos torna selectivamente palermas.
Outros de nós chateamo-nos permanentemente ao lado, quer dizer, deslocamos a nossa agressividade para pessoas, objectos ou situações com sabemos e podemos lidar e passamos a vida em lutas de alecrim e manjerona quando a fonte do nosso mal-estar é outra, que não admitimos nem para nós próprios.
Vulgar, muito vulgar, é atribuirmos aos outros os nossos próprios sentimentos, sentirmo-nos frustrados e dizermos que vivemos num círculo de gente frustrada, sentirmos inveja de alguém e acharmos de pedra e cal, que é esse outro que nos inveja a nós por razões que sistematizamos e apresentamos depois de forma lógica e estruturada.
A listagem dos mecanismos de defesa de que fazemos uso para enfrentar a vida e viver todos os dias é extensa complexa e s vezes pouco compreendida, sobretudo porque algumas dessas defesas se vão transformando em verdadeiros empecilhos, que, em vez de nos protegerem dos eventuais ataques à nossa integridade psicológica, se instalam como vírus num sistema operativo, a inventar ataques que não existem. De facto, verifica-se com uma frequência surpreendente que muitas pessoas não precisam de inimigos. Elas sozinhas, sem ajudas nem estímulos, encarregam-se de se boicotar. Assumem que não podem, não sabem, não são capazes. Assumem que têm medo, que irão perder o amor de alguém muito significativo se fizerem isto ou aquilo. Acreditam que o destino, as fadas ou os astros exigem delas atitudes e comportamentos especiais, de que ninguém se lembraria. Vivem ensombrados por regras, que elas próprias inventaram, por expectativas irrealistas, por fantasmas que os outros não conhecem.
As razões por que as defesas se tornam em resistências, quer dizr, os motivos por que os mecanismos que temos disponíveis para lidar com os problemas se transformam, eles próprios, em problemas, também são múltiplas e complicadas por agora, sublinhe-se apenas a responsabilidade que temos em ir actualizando o que somos, em ir pensando o que nos acontece, em dar nome ás coisas que sentimos.
(Pode ser que um dia se inventem antivírus humanos, que procedam automaticamente á actualização das defesas.)

Fonte: Revista Caras
Texto/Autor: Isabel Leal (Professora  de Psicologia)
Foto da Net
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terça-feira, 4 de outubro de 2016

Curiosidade


Somos todos curiosos. Não faz mal, dá jeito e, em termos desenvolvimentais, é mesmo garante de sobrevivência. Desde pequeninos que usamos o que de inato isso tem para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação, para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações.
São os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam para a frente empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece ao lado não lhes diz  respeito. Claro que há curiosidade e curiosidade.
Se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e a partir daí galopa na construção de histórias, que, mesmo não sendo, bem que poderiam ser, que, mesmo que sejam maledicentes, bem que poderiam ser legítimas.
É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para ouvir a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos; que nos faz abrandar, quase parar, para ver o tal acidente na auto-estrada; que nos conduz a ler nas revistas aspectos picantes ou triviais da vida de artistas ou figuras públicas, ilustres desconhecidos que têm casas giras, profissões diferentes ou nomes de família.
Interessamo-nos cheios de lata ou disfarçadamente, por aspectos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum, não nos dizem respeito, nem tocam, mesmo que ao de leve, no nosso quotidiano morno. Dizemos sempre que aproveitamos as idas ao médico ou ao cabeleireiro para nos pormos a par dos pequenos escândalos e dos acontecimentos sociais, que, valendo o que valem e sendo o que são, nos dão espaço para acreditar que há vidas leves e despreocupadas, que há criaturas que passam os seus dias a preparar-se para noites de festa.
Passamos os olhos pelas notícias dos jornais e das televisões e o que parece sobressair são os eventos romanescos dos maridos e mulheres que se mataram a tiro e à facada, as criancinhas desaparecidas ou abusadas, os crimes pequenos ou grandes que vão acontecendo.
Seremos voyeurs? Cuscos? Criaturas infelizes com vidas chatas? Uma nova espécie de alcoviteiros de aldeia ou de senhoras que passam na janela parte do dia a controlar entradas e saídas de vizinhos e construindo a propósito enredos dignos de novelas?
Para que nos servirá saber como corre o namoro de um actor americano com uma cantora inglesa? Porque é que os maridos e os ex-maridos de uma qualquer princesa, os carros de um magnata, as viagens de uma “tia”, nos farão falta? Porque é que a violência doméstica, os acidentes de viação, a delinquência escabrosa, nos emocionam ou, pelo menos, nos chamam a atenção?
Porque é que polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas e do outro os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes?
Sabendo nós que estes extremos correspondem à espuma insignificante das representações possíveis, porque é que preferimos umas ou outras, porque é que não nos contentamos coma trivialidade das informações precisas e desapaixonadas que, por mero acaso, nos chegam às mãos?
Há respostas sofisticadas para isto. Mas serve perfeitamente a justificação que ouvi hoje: “ Ainda bem que dá para perceber que o mundo está cheio de gente mais estranha que eu.”

Fonte: Revista Caras
Texto: Isabel Leal (Professora de Psicologia)
Foto da Net

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

As Orientações Sexuais


Como a orientação homossexual passou a ser considerada como uma legítima possibilidade, a maioria de heterossexuais ficou desorientada.
A maior parte das pessoas é heterossexual, acham que assim está muito bem e, em abono da verdade, nunca se lhes colocou outra hipótese. Em função disso mesmo, consideram, ainda que íntima e secretamente, as pessoas que não são como elas próprias- quer dizer, as que são homossexuais ou as que, ao longo da vida, vão estabelecendo relações sexuais amorosas, umas vezes com homens outras com mulheres - seres curiosos ou aberrantes (dependendo este último considerando de muitos e variados factores que não vêm agora para o caso).

Como há uns tempos para cá a orientação homossexual passou a ser considerada, pelos poderes e pelos saberes que organizam estas coisas, como uma legítima possibilidade – e foi descartada a correlação com doença, vício, deformidade, genes tortos, mau carácter, delinquência e outras suspeições de equivalente conotação negativa - , a tal maioria de pessoas heterossexuais ficou com a curiosa preocupação de, afinal, ser igual a uns tantos (que julgava diferentes) e não saber bem como se resolve esta moderna dissonância cognitiva.

E se fôssemos nós?

É que (estão a ver?) se ser homossexual ou heterossexual é mais ou menos a mesma coisa, então porque é que uns são de uma maneira e outros de outra? Se não é uma escolha, uma decisão, uma compulsão nem uma malformação do desejo mas apenas e tão-só uma casualidade biográfica, entre outras, como é que se faz para controlar o desatino do destino (ou será da estranheza da própria condição humana?).

Mais complicado ainda: se a orientação sexual não é uma construção assim tão estável como isso, o que é que pode acontecer, num futuro mais ou menos próximo ou distante, aos que conhecemos e a nós próprios?

Quem é que garante que o nosso devoto marido não nos troca um dia por um senhor bem-posto, em vez da incontornável secretária com menos vinte anos?
Quem é que nos diz que a nossa filha adolescente, tão feminina, tão preocupada com toilletes, não se vai apaixonar pela sua melhor amiga?

Quem é que nos garante que um dia destes não nos baralhamos e na ressaca de uma separação violenta, daquelas que nos põem cheios de raivas pelos «queridos» do sexo oposto, nos envolvemos, sem dar por isso, com quem não devemos? (Será devemos? Queremos?...)

Como calculam, ninguém garante nada a ninguém. Ainda assim, vale a pena reparar que há orientações e desorientações sexuais, como aliás em tantos outros assuntos.

Desorientações

As orientações, como o próprio nome indica, seguem direitinhas a fila esperada e no caso da sexualidade são convicta e firmemente homossexuais e heterossexuais. 

As desorientações, por seu turno, e como convém à designação, têm momentos e experimentam-se como podem e sabem: muitas vezes mal – independentemente de serem homo ou hetero.

Fonte: Revista Noticia Magazine
Texto: Isabel Leal (Psicóloga)
Foto de : José Fragateiro
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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Felicidade e História

Será mesmo verdade que os felizes não têm história? E será que queremos mesmo essa ausência de história em troca da alegada felicidade? Ou é da história que conseguimos ter que retiramos a nossa felicidade? No fundo, história e felicidade, acontecimentos e emoções, são a fita métrica da nossa vida.


1 – É ponto assente que os povos felizes não têm história. Ainda assim suspeita-se da afirmação, ou pela descrença num qualquer estado de beatitude relativamente permanente a que se possa chamar de felicidade, ou pela circunstãncia de não se lobrigrar onde estejam os tais povos sem história.
Por demasiadas razões, provavelmente mais das pessoas que dos povos e mais individuais que colectivas, parece que a capacidade e o desejo de provocar acontecimentos, embarcar em ideias que têm consequências, viver emoções e significar os dias e a vida, chega e sobra para entrar numa especial corrente do tempo a que depois se chama história.

2 – Mas a ideia da afirmação percebe-se: são os não acontecimentos, a ausência de rupturas bruscas, a continuidade sem sobressaltos, o fluir dos dias de forma esperada e previsível que, ao não permitirem pontuações especiais e comemorações especiais, anulam um qualquer carácter histórico.
Por qualquer razão, algumas pessoas dispõem-se a adaptar à sua dimensão esta frase bonita e a fazerem de conta que não têm história, que tudo o que sentiram e viveram era exactamente o esperado e adequado e que por isso, pelo facto de não terem história são, têm de ser, felizes ou pelo menos contentinhas.

3 – Por qualquer razão, há como que uma espécie de vergonha em assumir para si mesmo que «tendo tudo para ser feliz» afinal não se consegue chegar lá. Que há pequenos acontecimentos de outros tempos, pequenas sensações do passado, minúsculos dizeres de pessoas que já desapareceram ou perderam importância , que regressam ciclicamente à mente, aos sonhos e influenciam o dia-a-dia, como se tivessem importância.
Mas queira-se ou não, o que aconteceu e o que se sentiu é, à escala individual, a forma de mensuração do mundo. Mais acontecimentos, maior espectacularidade, não se traduzem em maior sensibilidade ou emoção. Cada um tem a história que tem e, porque é a sua, é necessariamente a de referência e a mais importante.
Seguro mesmo é que as pessoas felizes também têm história. E sabem que a têm.

Fonte: Revista Notícias Magazine
Foto: Marta Torrão
Texto: Isabel Leal (Psicóloga)

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quinta-feira, 2 de junho de 2016

Da Ignorância

Sabemos que não sabemos e por isso esforçamo-nos por clarificar aspectos que possam ter a ver com o que aí vem. Ou então angustiamo-nos. Porque o reino dos céus é só dos que da ignorância sabem nada.


1 – Sabemos que não sabemos.
Não sabemos muito mais do que o que sabemos sobre assunto algum, e o tamanho da nossa ignorância agiganta-se de forma directamente proporcional à quantidade de conhecimento que conseguimos assimilar e elaborar. Quanto mais sabemos, melhor percebemos o pouco que isso é e, sem querer, vamos chegando a um qualquer entendimento dos dizeres socráticos. Vamos dando conta das perguntas que somos capaz de formular, sem vislumbre de respostas. Vamos percebendo como crenças arreigadas ocupam o lugar de informação que não temos. Vamos entendendo como as nossas muitas duvidas nos facilitam a aceitação de verdades mal esgalhadas. Vamos, dia a dia, situando-nos como podemos, face às nossas incertezas e à volubilidade do conhecimento que julgamos deter.

2 – Sabemos que não temos a menor ideia de como será o que há-de vir.
Percebemos de forma indistinta que o que guardamos como memória do passado, o nosso e o do mundo, é parcial, rebuscado, opinioso e , eventualmente, mesmo falacioso.
Sabemos que aquilo que vamos assumindo como certo, como bom ou como útil, dura o que dura, o que é sempre demasiado, pouco para acalmar frustrações ou para permitir sonhos de certezas.
Vivemos, actuamos e procedemos cheios de uma atitude de segurança que só pode vir, em função do que sabemos sobre o que não sabemos, da nossa intrínseca capacidade de lidar com o desconhecido.

3 – Porque sabemos que não sabemos, alguns de nós, migalha a migalha, grão a grão, esforçam-se por aclarar aspectos novos, diferentes ou negligenciados, de uma qualquer realidade, tão parcelar e obscura como todas as realidades.
Outros, angustiam-se terrivelmente pela consciência de desamparo que tamanha ignorância pode querer significar e, ou invocam deuses novos e velhos em vão e a propósito de questões triviais, ou deprimem-se e azedam num funeral precoce de toda a capacidade de esperança.
Entre uns e outros, restam todos os outros, que de conhecimento têm pouco e da ignorância sabem nada. Parece que é deles um reino mítico dos céus.

Fonte: Revista Notícias Magazine
Texto: Isabel Leal (Psicologa)
Foto da Revista
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sábado, 20 de outubro de 2012

Fertilidade


“Entre nós, os primeiros filhos estão a nascer quando as mulheres têm mais ou menos 30 anos. Quer dizer, coincidentemente com a fase em que em termos estritamente biológicos, a fertilidade começa a declinar.”

Há muitas maneiras de as pessoas serem férteis: nos afectos que prodigalizam, nas ideias que recriam e desenvolvem, nas atenções que dispensam, nas narrativas que produzem e ajudam outros a crescer, no que constroem e é, em si mesmo, marcante ou sentido por alguém como tal.

A fertilidade de alguns escritores, artistas, ideólogos e também a de desconhecidos nossos, que se desmultiplicam em gestos e atitudes que, consensualmente, cremos produtivos, está ai todos os dias a dizer-nos que ser fértil não acaba nem começa no ter filhos.

Apesar disso, apesar dos múltiplos sentidos que a fertilidade pode ter, acho que irremediavelmente a associação vai direitinha para a capacidade de procriar. Parece mais acessível e de prazer mais imediato ter filhos que fazer obra. Parece que ter filhos é um dado da Natureza, que se deve estimar e cumprir e que, ainda por cima, tem a enorme vantagem de nos fazer iguais aos outros, de testemunhar do nosso estado adulto e do nosso desejo de dádiva e de continuidade.

Acontece que nós, seres humanos, tratamos a Natureza com despudorado laxismo. Não lhe ligamos muito. Escrevemos sobre ela, e a propósito dela, discursos curiosíssimos: uns pouco em alguma sintonia e uns muitos à completa revelia dos caminhos que ela parece indicar. Uns desses tortuosos resultados é aquele que se prefigura hoje na questão da fertilidade humana.

Entre nós, os primeiros filhos estão a nascer quando as mulheres têm mais ou menos 30 anos. Quer dizer, coincidentemente com a frase em que, em termos estritamente biológicos, a fertilidade começa a declinar. Depois de termos decidido que os anos abaixo dos 20 eram impróprios para a conceção, em nome de uma longevidade humana cada vez maior, de uma necessidade de diferenciação escolar e profissional crescente, de uma imaturidade psicológica e social óbvias, fazemos agora o mesmo com os 20, mais ou menos pelos mesmos motivos.

Ficamos assim, com a década dos 30 e uma parte da dos 40 como fase procriativa, em que a vida está arrumada, o conforto a garantir às crianças já é possível e todos os precisos parecem nos conformes.

Aí, acontece cada vez mais frequentemente descobrir-se que a criança que se deseja não vem. Que os tratamentos disponíveis não são milagreiros e também eles são atentos à idade dos progenitores. Mais de 35 anos já merecem um olhar esguelhado. Descobre-se que afinal os homens também não são tão férteis quanto a tradição garantia e que muitas vezes o esforço de ter um filho se torna numa aventura traumática e complexa. Depois vem o espanto, o descrédito:

Como é que ninguém me disse que eu, tão novo para tantas coisas, já sou velho para outras?”

Provavelmente ninguém disse, porque felizmente não é sempre assim, mas lá que a situação começa a ser parecida com um problema, começa. Ainda agora uma mulher de 36 anos, com ar de menina, me dizia que um dia talvez gostasse de ter filhos. Espero que esse dia não seja um qualquer tarde de mais.

 
Autor: Isabel Leal
Professora de Psicologia
Clínica no ISPA
Fotos da net
Por: C@rlos@lmeida

quarta-feira, 28 de março de 2007

Crenças Alternativas

“De tão pessoais e únicas crenças resulta o efeito perverso de não serem facilmente partilháveis, de não se conseguirem construir como referenciais minimamente estáveis e os de pertenças e interacções sociais.”

De há uns anos para cá tornou-se moda um conjunto de formas de estar, de algum modo “alternativas”, em que se mistura, a maioria das vezes atabalhoadamente, uma simpática psicologia positiva e simplificada, resquícios fisiológicos orientais, práticas antigas de cariz divinatório e mais umas coisitas entre o místico e o mágico.

No conjunto, a ideia é tão boa como outra qualquer e serve, no essencial, para as pessoas que lhe concedem centralidade viverem o melhor que podem, acreditando que umas quantas práticas lhes fazem bem e qua o acesso a uns tantos conhecimentos lhes garante aquele patamar de originalidade que as torna especiais.

Sendo dado que o facto de nos sentirmos detentores de uma qualquer verdade nos fortalece a auto-estima e o amor-próprio, em princípio nada há a opor e essas novas convicções que têm a particularidade de serem á medida e personalizadas, já que cada um escolhe o que lhe faz mais sentido.

De tão pessoais e únicas crenças resulta, entretanto, o efeito perverso de não serem facilmente partilháveis, de não se conseguirem construir como referenciais minimamente estáveis e organizadores de pertenças e interacções sociais. Ou seja, corre-se o risco de aumentar a incomunicabilidade e de usar retalhos de conhecimentos curiosos para distanciar os outros que não têm o mesmo tipo de ‘esclarecimentos’ e ‘iluminação’. E nas fés auto-erigidas há sempre elementos incompreensíveis, já que espelham personalidades, desejos e medos únicos e intransmissíveis.

O agradável de crenças e referências antigas e organizadas é que nos ajudam a distinguir os próximos dos distantes, implicam-nos na partilha do que há em comum, estabelecem-nos pertenças e enquadram-nos em redes em que não estamos sozinhos.

Não sendo a solução para todos os problemas e acarretando os seus próprios disfuncionamentos, ter uma religião, um clube, um grupo, uma cor ou uma nação é uma escolha de contacto, que a história do mundo mostra ter inegáveis vantagens.

Crenças individualizadas e fragmentadas, por seu turno, se destacam originalidades e idiossincrasias interessantes, também isolam os seus autores e põem a nu, com excessiva facilidade, confusões e angústias fundamentais. Sendo as pessoas o que são, quer dizer, seres de origem e vocação social, que muito mais facilmente descobrem o bem-estar no encontro com o outro do que numa zona de solidão altiva e hermética, dava jeito que não se exagerasse na elegia da originalidade e dos caminhos alternativos.

Fonte: Revista Caras /Psicologia

Texto/autor: Por Isabel Leal / Professora de Psicologia Clínica no ISPA

Foto da net