Há 60 anos, o Mahatma foi morto a tiro em Deli, e a morte violenta fez ressaltar os seus ideais pacifistas.
Lançar um breve olhar a uma foto de Mohandas Gandhi (conhecido por Mahatma, "grande alma" em sânscrito) faz-nos de imediato pensar nos estranhos mecanismos que desenvolvem a força e comandam o poder.
Aquele homem franzino de cabeça calva e óculos redondos, enrolado em panos e frequentemente arrimado a um varapau, tornou-se uma das figuras mais conhecidas e respeitadas da História, inspiradora de pelo menos 5 mil livros de análise. Mais do que pela independência política da sua Índia natal,ele lutou pela interdepêndencia anglo-indiana voluntariamente assumida e fundada no amor.Defendeu que o uso da força não-violenta é a forma mais eficaz e digna de combater por uma causa. Recorria ao jejum pessoal para fazer vergar os opositores. Vestia-se com khadi, roupas simples de fabrico caseiro. Incorrupto e incorruptível, sempre recusou recompensas materiais ou cargos públicos. A certa altura decidiu ir viver para um ashram, uma comunidade religiosa hindu auto-suficiente. Era vegetariano e durante a maior parte da vida praticou o celibato, embora fosse casado desde os 13 anos com a inteligente mas submissa Kasthurba.
Nem todos saberão que era licenciado em Direito por Londres, que na juventude usara fato com colarinhos duros e que conhecia bem o Ocidente. Como se compreende, a Inglaterra imperial detestava-o e Churchill referia-se a ele como a « uma espécie de faquir seminú». Travaram uma luta de gigantes e venceu o mais forte. O seminú.
Alguns livros recentes, aparecidos na onda comercial do 60º aniversário da morte de Mahatma, apontam facetas consideradas bizarras da sua personalidade. Entre essas irreverências é apaontado o facto de ter comparecido de Khadi a uma recepção de Jorge V, no Palácio de Buckingham. Quando os jornalistas lhe perguntaram se tinha intenção de o fazer, respondeu que o rei haveria de vestir o suficiente para os dois.
Diz-se ainda que Kasthurba haveria de ser vitimada pela pneumonia por ele não ter consentido que lhe fossem administrados antibióticos. Que dormia com jovens às quais não tocava, só para testar o seu próprio auto-controlo. Que escreveu sobre as qualidades dos excrementos humanos na adubagem das terras. Que recomendou aos ingleses que combatessem Hitler de forma não-violenta, ou seja, com armas diferentes das do tresloucado ditador. Afinal, manifestações próprias de um espírito inquieto na incessante busca da natureza e da paz.
Mas o «pai» da moderna Índia será sempre recordado como o homem corajoso que além de ter lutado e obtido a independência, travou ainda uma das maiores batalhas pelos direitos humanos na África do Sul, onde viveu na juventude. Sonhou depois com um subcontinente unido onde convivessem hindus e muçulmanos, e aí falhou, pois o Raj britânico haveria de cindir-se em dois estados: a Índia e o Paquistão. Embora religioso, não era tradicionalista, tendo sabido extrair o melhor de cada uma das filosofias da vida que estudara, com relevo para o hinduísmo em que foi criado, para o ramo Krishna que o orientou, para o cristianismo (apreciava sobretudo o Sermão da Montanha) e para os príncipios básicos da teosofia de Annie Besant e Madame Blavatsky. Se estas últimas leituras lhe conferiram, aos olhos «politicamente correctos», uma tonalidade marginal, elas atestam uma personalidade livre de preconceitos. Foi ainda em liberdade de consciência que este filho de uma nação conservadora esgrimiu pelos direitos dos párias e pela igualdade das mulheres.
Antes de morrer teve tempo para pedir que não fizessem mal ao assassíno mas a justiça ignorou o apelo do mais incomum dos líderes e fez enforcar o autor dos disparos, um radical hindu que não perdoou a Ghandhi o facto de este ter ordenado o pagamento de dívidas ao Paquistão.
Por Luís Almeida Martins in Visão de 24 de janeiro de 2008