Misérias e grandeza da
tatuagem
(Homem maori tatuado.
Crédito: Thomas Chambers a partir de arte original de Sydney Parkinson, século
18/Wikimedia Commons)
O tempo, no seu longo e
vertiginoso rodar, não conseguiu banir por completo, mesmo entre os povos de
maior civilização, certas usanças e crenças dos nossos mais remotos
antepassados.
A responsabilidade deste
facto cabe em maior quinhão, como pretende Lombroso ao atavismo e á tradição
que ele magistralmente define como outra espécie ou género de atavismo
histórico.
No número dessas baldas
perduráveis conta-se a tatuagem.
Vinda, presumivelmente, do
paleolítico inferior, do período denominado mousteriano, ela constitui, por
isso um dos múltiplos e dos mais resistentes elos desta grossa cadeia que
jungue certos hábitos da época presente aos das mais antigas eras.
Como um imperturbável
viandante, audacioso e resoluto, a tatuagem conseguiu, apesar de perseguida
pelas religiões, pelas leis e pelo preconceito social, galgar, com serenidade e
pertinácia, todas as barreiras que lhe opuseram as idades e as civilizações.
A tatuagem na antiguidade
(Nativos da Polinésia,
Filipinas, Indonésia e Nova Zelândia realizavam rituais religiosos que incluíam
a confecção de figuras colorizadas definitivas sob a pele.)
Servindo quase sempre a vaidade,
se a vemos muitas vezes, rastejando pelos antros e ruelas da amargura, dando o
braço ao vício, ao crime e á ignomínia, também a encontramos, a cada passo,
altaneira e triunfante, pondo os seus préstimos ao serviço do amor, da mística,
do patriotismo e de todos os mais elevados e belos sentimentos. Por esta razão
entra nos templos, ornamentando os braços das vestais; desenhando o instrumento
do suplício de Cristo, patenteia-se nos braços e nas mãos dos pagãos,
convertidos ao cristianismo pelos Apóstolos; adorna o corpo dos sacerdotes
romanos, na pele, de cada um dos quais, mostra o símbolo de Deus a que ele
rende culto.
(Crédito:
Christina Enrich, H2Fotografie)
E, nessas épocas da velha
Roma dos Césares e do antigo Egipto dos Faraós, ainda mais alto se vê erguer o
prestígio, a honra e a grandeza da tatuagem: os imperadores ostentaram-na,
sobranceira ao seu «braçarium», em emblemas com o desenho duma águia, que define
e sintetiza todo o poder Imperial Romano. Da sua passagem gloriosa pelo Egipto
colhe-se notícia na «Biblioteca das Colunas», sobre as margens do Lago Meris,
conhecida também por «Tesouro dos Remédios da Alma».
Nesta vetusta biblioteca, a
mais velha das que a História faz referência, pois remonta ao ano 2188 a.C., se
pode ir conhecer o ensinamento de que Osimandias, o Faraó promotor da conquista
dos Bactros, vindos da Ásia, em sinal de regozijo por este feito e em acção de
graças aos deuses, fez gravar nas carnes do seu peito o desenho do «Ocaso do
Sol», símbolo de Osíris.
A tatuagem de Eduardo VII
Igual aura e destino lhe têm
proporcionado, algumas vezes, estas últimas dezenas de anos, que continuaram a
abrir-lhe as portas dos paços reais e dos palácios imperiais.
Assim, a princesa Maria,
enamorada do principe Valdemar, da Dinamarca, oficial da marinha de guerra,
saiu um dia do palácio vestida com o fato da sua criada particular, para mandar
tatuar na pele do seu braço uma âncora, em homenagem ao seu futuro marido.
Para ninguém é também
estranho que o rei Eduardo VII, quando Príncipe de Gales, viajou pelos lugares
santos, e aí, sensibilizado e cativado pelos olhos negros aveludados e meigos
da filha de um tatuador, pagou ao pai para lhe gravar no braço esquerdo o
símbolo da religião cristã. Parece, até, que este facto lhe deu uma certa
satisfação, segundo o afirma Gabriel de Charmes, no artigo «Viagens na Síria»,
publicado no número de Junho de 1881 da «Revue des Deux Mondes»,
corroborando-o com esta certidão passada ao tatuador:
«Ceci est le certificat de
Francis souwan. A grave la croix de jerusalem sur le bras de S. A. Le prince de
Galles. La satisfaction de Sa Magesté a éprouvée de cette opération prouve
qu’elle peut être recommandée. Signé: Vanne, Courrier de la suite de S. A. Le
prince de Galles. Jerusalem, le 2 Avril 1862».
Este gesto do monarca
rapidamente se divulgou. Então, a tatuagem espalha-se profusamente entre a
gente e a corte Inglesa. Além do Duque de Saxe-Coburgo Gotha e do seu cunhado
grão-duque Alexis, tatuaram-se o sobrinho daquele, duque de York, muitos lords,
damas e a fina flor aristocrática.
Pela leitura e ilustrações
das revistas e jornais ingleses fez-se ideia nítida e perfeita da autêntica
epidemia de tatuagem, que assolou a pele do povo da Grã-Bretanha, para
solenizar a coroação do rei Jorge VI.
(Sutherland
Macdonald)
Durante o reinado do seu
avô, um professor Williams especialista em tatuação, tornou-se notável e rico
pois estipulava para as suas tatuagens o preço mínimo de 50 libras;
posteriormente, um outro artista londrino, de nome Macdonald, montou um
escritório e uma oficina de tatuador na Jeremyn-street, que foi largamente
visitada e utilizada pela gente mais distinta e celebre da corte. Este tatuador
conseguiu também amealhar uma boa fortuna.
As epidemias da tatuagem
Estas epidemias e endemias
da tatuagem, originadas por acontecimentos de natureza patriótica ou de
natureza política e outros, são vulgares dentro das fronteiras de alguns
países, alastrando, mesmo, pelo mundo civilizado.
No decurso da chamada Grande
Guerra, desde 1914 a 1918, houve nas trincheiras milhares de tatuações.
Indivíduos pertencentes às mais diversas classes sociais, que, no geral, não
costumavam ser portadores desses desenhos dérmicos, resolveram deixar-se tatuar.
Assim foi com médicos, advogados, empregados comerciais e de escritório,
operários, etc.
Entre nós, durante os
agitados tempos das lutas e da implementação do regime liberal, bem como no
período da propaganda da Républica e nos primeiros anos após a sua proclamação,
registou-se um notável acréscimo da tatuagem, apresentada em emblemas políticos,
respectivamente, coroas reais, barretes frígios, figuras e bustos da república,
bandeiras, etc.
E por estar estudado e
averiguado, desde há muito, este recrudescimento dos desenhos da derme, sempre
que aparece uma nova mística ou que um novo regime se interpõe na mancha
política de uma nação, não deve surpreender-nos que os nazis se tivessem tatuado
á farta com o símbolo sectário da cruz suástica.
«Morte aos reis»
E inconveniente destas
ideias extravagantes são as surpresas que o futuro reserva, por vezes, aos
portadores desses desenhos, que os colocam em sérios embaraços. É que esses
símbolos num dado momento podem tornar-se altamente comprometedores e
prejudiciais.
Assim aconteceu a muitos
combatentes da outra guerra, assim está sucedendo aos nazis, mas com piores
consequências. Já assim tinha acontecido, certo dia. Aquele general
Bernardotte, que Napoleão sentou no trono da Suécia, com nome de Carlos XIV. De
uma vez, sentindo-se gravemente doente, recusou com toda a sua energia a
deixar-se sangrar, apesar do seu médico assistente lhe preconizar essa
intervenção cirúrgica como única esperança de salvatério. Por fim julgando-se
perdido e continuando a ser assediado pela insistente teimosia do clínico,
conformou-se a consentiu, embora contrariado e mal disposto. Impôs, porém, uma
condição: o médico prestaria juramento prévio de que a ninguém contaria o que
ia observar no seu régio braço.
Assim foi. E … porque o
cirurgião cumpriu religiosamente o seu juramento revelam os livros – não o
médico – Esse segredo: al levantar-lhe a manga da camisa, o clínico viu, com
surpresa e espanto, que o monarca, na região do sangradouro, tinha tatuado um barrete
frígio e sobre ele, esta curiosa legenda: «Morte aos reis».
Beethoven tinha dedicado a
sua famosa 3ª sinfonia – a «Heroica» - a Napoleão, em cujos feitos inspirara o
seu trabalho. Ao saber, porém, que Napoleão, tomado de cega cobiça do mando, se
fizera coroar Imperador, tirou-lhe a dedicatória e pôs-lhe este título: «Grande
Sinfonia heroica, composta para festejar a memória de um grande homem».
Fonte: Revista Ver e Crer
nº6 Outubro 1945
Texto/Autor: Dr. Rodolfo
Xavier da Silva
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