Embora o frio e a chuva lhe
assentem bem, o chá é mais do que uma paixão de Inverno. Ideal e receptivo,
aconchega-se aos nossos estados de alma sem perder a personalidade.
As mãos treinadas na colheita de
chá desenham as formas dos jardins do Assam, no Nordeste da Índia, retirando as
folhas do verde absoluto. São mãos de mulheres, quase sem excepção e pesam-lhes
todos os séculos do mesmo destino incontestado. Apesar disso, movem-se com
destreza e sabedoria, rápidas como um vento outonal – escolhendo aqui,
declinando ali – e recortam os arbustos à medida da perfeição que o chá exige,
atentas a subtilezas que uma máquina seria incapaz de perceber.
Talvez haja, nesta tarefa
artesanal sem princípio nem fim, uma certa semelhança com a caligrafia e a sua
técnica contida e rigorosa, mas animada pelo essencial. Se uma carta manuscrita
é portadora de identidade, também é certo que não existem dois chás iguais.
Serão as folhas colhidas nos jardins do Assam – e em todos os jardins de chá do
mundo – letras de um alfabeto que cada um de nós escreverá à sua maneira? Quase
podemos assegurar: prepara-me um chá, dir-te-ei quem és… Ou então: prepara-me
um chá, dir-me-ás quem sou.
Da Mão para o Bule
O chá foi um dos temas de eleição
de António Mega Ferreira para o livro Uma
Caligrafia de Prazeres (Texto Editora), um itinerário personalizado por
certos lugares, ideias, vozes, aromas, paladares, livros e outras coisas que
trazem significado à vida – e, além de significado, também beleza e
intensidade. Os desenhos de Fernanda Fragateiro fazem luz sobre as palavras,
discretamente.
Apesar de ter crescido «na
convicção de que o chá era bebida essencialmente feminina, por contraposição ao
café», Mega Ferreira tomou-lhe o gosto na adolescência, em companhia de um
pequeno grupo de amigos, adeptos do bridge fora de horas. «O chá, que nunca
deixei de frequentar, tornou-se com o tempo, a minha bebida de estimação: uma
longa teoria de chás adorna a prateleira da cozinha, respondendo aos meus
humores de momento», escreve.
De verão e de Inverno, convoca o
chá para a mesa do pequeno-almoço e declara preferência por chás «fortes,
escuros, apaladados», embora nem todos se prestem ao consumo matinal. Caso de
um chá preto fumado, o Lapsang Souchong chinês, que acompanha com distinção
pratos de carne de aves e aperitivos salgados ou condimentados. À tarde será
sempre bem acolhido um chá perfumado como o Earl Grey. A resumir uma prática
dos chás, haverá que ter em conta um só princípio: «deve-se beber chá quando
nos apetece».
Geografias do Chá
Razão tem quem disse: «Por
estranho que pareça, até agora a humanidade encontrou-se na chávena de chá. É o
único cerimonial asiático que merece a estima universal». De Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (ed.Cotovia) permanece,
desde a publicação no início do século
XX, um legado fundamental da sabedoria do chá. Indissociável do budismo zen e
do taoísmo, a cerimónia do chá japonesa faz parte de «uma religião da arte da
vida».
Como poderemos nós, os náufragos
da cidade, alguma vez entender isto? Como podemos ser salvos por um saquinho de
chá desconsolado, a afundar-se na água quente de uma cafeteira inox?
Fonte:Revista NotíciasMagazine
Texto: Carla Maria de Almeida