Há, pelo mundo, uma infinidade de santos
espraiando-se pelos dias do ano, pela toponímia e até pelos bilhetes de
identidade. Alguns foram adoptados pelo povo. A Humilde Rita, mulher doce mas
“vulgar”, não realizou nenhum milagre espectacular. Mas é venerada com um
afecto familiar, porque tinha o dom de ajudar os mais desafortunados.
A vida póstuma dos santos é imprevisível, tanto como
a dos homens ilustres, os artistas os escritores, que o futuro esquece ou
imortaliza, abandona ou retoma sem que nenhuma autoridade a isso se possa opor.
Quem lê nos nossos dias Sully Prudhomme, primeiro prémio Nobel da Literatura em
1901, e que universitário previu o impacto posterior de dois pobres diabos como
Lautréamont ou Rimbaud? Ao declarar que Santa Rita era a mais popular das
santas, a par de Santo António de Pádua, o Papa João Paulo II constatou a
amplitude de uma veneração que a Igreja não tinha encorajado.
António de Pádua, canonizado no ano seguinte ao da
sua morte, permaneceu muito tempo na sombra do santo Francisco de Assis antes
de conhecer um sucesso fenomenal e inopinado. Do mesmo modo, a humilde Rita de
Cascia, falecida em 1427, só foi beatificada em 1628 e canonizada em 1900, como
se a Igreja apenas a contragosto tivesse registado a intensa piedade em redor
da “patrona das causas desesperadas”.
Os objectos perdidos e as causas desesperadas talvez
participem de uma dimensão do impossível demasiado sedutora para os espíritos
ingénuos que exigiram poderes exorbitantes, mais mágicos do que os que cabem
num santo decente. Mas se o Papa nomeia os santos, o povo nem sempre espera
para eleger os seus.
O Professor Yves Chiron nota na sua “Verdadeira
História de Santa Rita” (Perrin,2001) a dificuldade de traçar com certezas os
passos da vida de Rita sem que possamos ainda assim duvidar da sua existência.
Por tudo isso, se associarmos, como aqui, à presença dos santos na vida
quotidiana dos fiéis a verdadeira história e as provas científicas (nomeadamente
as dos seus milagres), tudo importa menos que a sua lenda, princípio irracional
e activo através do qual intercedem a nosso favor junto do Céu. A de Rita é
constante, com variações mínimas.
Os seus pais, António Lotti e Amata Mancini, são camponeses
piedodos que vivem na Úmbria, 150 quilómetros a norte de Roma, e desesperam por
ter uma descendente; uma voz – um anjo – anuncia a Amata que vai dar à luz uma
filha e que lhe deverá dar o nome de Rita, em honra de Santa Margarida
(margarida quer dizer “pérola” em latim). Rita nasce a 22 de Maio de 1381 em
Roccaporena,, perto de Cascia. A pequena vila de Roccaporena, apesar de isolada
a 700 metros de altitude nos montes Apeninos, não ignora os problemas que
devastam o mundo abaixo. Enquanto em França a Guerra dos Cem Anos arruína o
reino, a peste faz milhares de vítimas em toda a Europa.
Quanto à Igreja, atravessa uma crise desde 1378, a do
Cisma do Ocidente. O Papa Gregório XI, exilado em Avinhão, regressou a Roma
para morrer. Urbano VI, que lhe sucede, deve afrontar um outro papa, depois um
terceiro. Urbano VI e Clemente VII entregam-se a uma luta sanguinária e
violenta, pouco cristã, para ocupar a sede de S. Pedro. Rita, contemporânea de
Joana d’Arc (nascida 31 anos antes da virgem francesa, vai sobreviver-lhe 28),
testemunhará também esta época de grandes desordens, reagindo à sua maneira,
discreta e menos militar.
Casada com Paolo
Tem um ano e dorme numa alcofa debaixo de uma árvore,
num campo onde trabalham os seus pais,
quando um camponês que acaba de se ferir com a foice vê um enxame de abelhas
voar em torno da pequena. As abelhas entram na sua boca sem a picar; ela sorri.
O Camponês tenta enxotar os insectos e a sua mão já ferida cura-se de imediato.
Os pais, a vila, não sabem como interpretar este presságio.
É educada na oração e no amor de Deus, dedicando-se
desde adolescente a tratar dos seus pais entretanto velhos, recusando quais
quer enfeites femininos; sonha perto dos 14 anos em abraçar a vida religiosa:
Os seus pais planeiam para si algo diferente e um dia dão a sua mão a um certo
Paolo. Rita começa por protestar: esta decisão vai contra os seus projectos,
Paolo passa por um sedutor, brutal e alcoólico. Depois submete-se à vontade dos
pais, reflexo da vontade de Deus; este Paolo, de uma condição social superior à
sua, saberá socorre-los melhor que ela própria.
A sua vida de casada é infeliz. Paolo é um alcoólico
violento a quem Rita trata com tanta paciência e doçura que os seus vizinhos a
apelidam “ a mulher sem rancor”. Rita jejua com frequência, encarando este
casamento como uma mortificação e reza pela saúde do marido. De facto, depois
de 18 anos de calvário conjugal, quando ela traz ao mundo dois gémeos, o
carácter de Paolo adoça-se, ele arrepende-se sinceramente, converte-se e o casal
conhece enfim uma felicidade de pouca duração.
Paolo fez muitos inimigos antes da sua conversão; uma
noite estes fazem-lhe uma emboscada e apunhalam-no. Paolo morre perdoando-lhes
o crime. Rita perdoa também aos assassinos do seu marido, mas os dois filhos
dominados pela cólera, como antes o seu pai, esperam vingá-lo. Rita
suplica-lhes em vão que nada façam e dirige-se a Deus: que ele os leve para
junto de si antes que se tornem criminosos. Os gémeos caem à cama doentes pouco
depois e convertem-se ao morrer.
Noviça em Cascia
De ora em diante sem família, Rita é livre para
realizar a sua vocação religiosa. Bate á porta do mosteiro de Cascia, mas por
três vezes as irmãs augustinas recusam-lhe a entrada. A congregação instituída
para jovens raparigas não acolhe viúvas. É também possível que entre os
religiosos se encontrem alguns familiares dos assassinos de Paolo. Rita procura
reconciliar os clãs hostis da vila e uma noite de natal S. João Baptista, S.
Agostinho e S. Nicolau levam-na para o mosteiro. A abadessa, descontente por um
tal patrocínio, aceita Rita como noviça, mas coloca-a à prova.
Não lhe poupam nem os vexames, nem as humilhações e a
sua paciência não fraqueja. Ordenam-lhe absurdamente que transporte cada dia um
pedaço de madeira. Rita obedece e a madeira floresce e dá uvas. Uma vez
admitido que professe, empenha-se em seguir a regra de S. Agostinho. Pouco a
pouco a sua reputação espalha-se: os que se lhe dirigem vêem as suas preces
cumpridas. As orações de Rita são ouvidas no Céu, o que não deixa de provocar a
inveja das suas irmãs.
Em 1443, numa sexta-feira Santa, Rita está em oração
diante do crucifixo do altar. Um espinho de gesso da coroa de Cristo cai sobre
ela, atingindo-a em plena fronte. No dia seguinte, a ferida agrava-se e exala
um odor repugnante. Algumas religiosas do mosteiro interpretam este estigma
como uma punição pelos momentos dramáticos da sua vida passada. A ferida só
fecha durante uma peregrinação a Roma pelas festas do Jubileu e, de regresso a
Cascia, reabre-se, purulenta e tão mal cheirosa que Rita é isolada numa cela,
onde vive observando um jejum quase absoluto.
Durante o Inverno de 1457, exausta, pede à sua prima
que lhe leve uma rosa do seu antigo jardim. No meio do jardim coberto de neve,
a prima descobre uma rosa esplêndida; leva-lha. Esta renova-se com duas flores.
No termo das suas forças, Rita recebe os últimos sacramentos e expira a 22 de
Maio do mesmo ano, com 76 anos. No instante da sua morte, a sua ferida
transforma-se num rubi, as roupas transmutam-se, a cela nauseabunda é inundada
de luz e de um perfume delicioso. Há cinco séculos e meio que o seu corpo
repousa, intacto e suave como uma rosa, diz-se, num caixão de vidro na basílica
de Cascia.
Santa do último recurso
De onde vem o culto dedicado a Rita? Ela não fundou
uma ordem religiosa nem produziu escritos espirituais, os prodígios que pontuam
o seu percurso terreste são pouco espectaculares, nenhum tirano a torturou;
somos tentados – exceptuando a parte dos embelezamentos habituais na matéria, a
parte das flores – a ver nela uma mulher memorável, doce mas “vulgar”.
Ora é precisamente por isso, porque ela não foi muito
diferente de tantos outros mortais, que a veneramos com um afecto quase
familiar. Porque, apesar dos obstáculos, perseverou, obstinada e pacificadora,
numa vocação que lhe tinham interdito. E decerto, como confirma já tarde a
inveja das suas irmãs rivais, porque ela tinha a arte de vir em ajuda dos mais
desafortunados, um dom de advogada dos “casos desesperados”.
Para milhões de crentes, nem sempre católicos, ela
acalma as tempestades, resolve as situações sem saída, cura os incuráveis. Com
ou sem razão, ela encarna a santa do último recurso, aquela que nunca abandona
os que apelas à sua bondade. Intocáveis ex-votos e livros de ouro concedem-lhe graças,
unânimes e muitas vezes anónimas.
Para além da Basílica de Cascia, uma enorme
quantidade de igrejas ou capelas são-lhe dedicadas um pouco por todo o lado,
como em Nice, em Saint-Aignan, perto de Rouen. Duas delas são singulares,
apesar de tudo, por motivos bem diferentes. Em Paris, no boulevard 65 de
Clichy, no altar do liceu Jules- Ferry, uma capela de Santa Rita pertence à
paróquia de Trinité. Longe de possuir os faustos barrocos da de Nice, é um
local austero, mesmo pobre, despido de ornamentos e mal assinalado, um vulgar
rés-do-chão em pleno Pigalle, no meio das “sex-shopes” e diante do Moulin Rouge.
Como se a Igreja, dedicando a Rita esta antiga capela do século XIX, tivesse
querido responder ao desejo legítimo expresso pelas prostitutas de terem um
local de oração reconhecido.
Sem pretender igualar maria madalena, a pecadora
amiga de Cristo, estas “mulheres da má vida” consideraram a sua vida
suficientemente má, tolerada com hipocrisia e cinicamente explorada, para
merecerem este asilo discreto. Daqui a confusão que por vezes se estabelece,
fazendo de Rita a patrona das mulheres de rua. A amálgama é falsa.
Para além disso, por uma comparação algo
condescendente, consideramos que apenas Rita pode reconfortar um “caso tão
desesperado” como o das prostitutas: Mas a capela acolhe maioritariamente fiéis
homens ou mulheres, jovens ou velhos, que nada têm a ver, nem nutrem nenhuma
atracção pelo comércio da carne.
Missa para os animais
No número 27 da rua François-Boivin, no bairro 15,
ergue-se outra igreja mais clássica, com nave de estilo gótico e vitrais, na
Paróquia de Santa Rita. Construída no fim do Século XIX pelo Igreja Apostólica
de Inglaterra, durante muito tempo fechada, foi reaberta em 1986 para se
transformar em sede da Igreja Francesa Anglicana.
Não desenvolvemos a longa história do anglicanismo
francês, nascido em 1870 em reacção ao dogma da infalibilidade pontifical. Não
discutiremos a validade do título de arcebispo reivindicado pelo seu
responsável.
Monsenhor Dominique Philippe é um homem agradável que
não desenhas os holofotes, os estúdios de televisão, e goza de um certo
vedetismo. No portão da Igreja de santa Rita, há fotos que o mostram na
companhia de Michéle Mercier (actriz francesa), eterna Marquesa dos Anjos, ou
do Conde de Paris. Adquiriu uma verdadeira popularidade celebrando uma missa
para os animais, que benze cada ano desde 1993, aos primeiros domingos de maio
e Novembro. “ No ìnicio, o Monsenhor Di Falco (agora porta voz dos bispos de
frança) mostrou-se zeloso, mas eu disse-lhe que se acalmasse. Benzemos
viaturas, barcos. No seu tempo, Pio XII benzeu canhões… Os animais, esses, têm
alma.”
A missa dos animais também se tornou – sob patrocínio
de S. Francisco de Assis – num estranho momento de folclore ligeiro, difundido
pelos “média” com o apoio de numerosas associações de amigos dos animais e
adversários de touradas. A Igreja de Santa Rita povoa-se de cães, de gatos, de
pássaros em gaiolas; na rua, cabras, porcos, burros esperam pela sua vez, mesmo
lamas e um dromedário. Cantores entoam com afinco “ Miau, miau!” no
irresistível “Duo dos gatos” de Rossini; enquanto Monsenhor Philippe,
imperturbável, sacode o seu hissope sobre os pássaros, os quadrupedes com toda
a espécie de pelagem e a todos dá a absolvição.
O que pensa Santa Rita, anfitriã involuntária desta
cerimónia? Antes de mais, a questão da alma dos animais dos animais remonta à
Antiguidade: E se a sorte sorridente da maior parte dos cães e gatos conduzidos
sobre o seu tecto não é um “caso desesperado”, ninguém sabe se a solidão dos
seus companheiros humanos o não será.
Fonte: Jornal Público/ “ Le Monde”
Texto: Michel Braudeau
CarlosCoelho