Líquido maravilhoso
Já pensaram alguma vez na
complexidade e importância vital do sangue?
É um líquido precioso com a
estrutura de um tecido especial que tem a faculdade de se infiltrar pelos
demais tecidos orgânicos, levando a cada célula o oxigénio, a água, o
equilíbrio iónico, enfim o alimento que lhe é indispensável.
Abandonado a si próprio depois
de retirado da circulação, o sangue coagula e da retracção desse coágulo
formado por fibrina encerrando nas suas malhas os glóbulos vermelhos e brancos,
transuda um líquido amarelo citrino denominado – sôro.
Impedida a coagulação pela
adição de um anticoagulante – o citrato de sódio, a hirudina ou a heparina – o
sangue divide-se numa parte sólida constituída pelos vários glóbulos sanguíneos
e uma parte líquida – o plasma.
Essa massa sólida de glóbulos
sanguíneos contém, no total, cêrca de trinta mil biliões de glóbulos vermelhos,
cinquenta biliões de glóbulos brancos e mil biliões de plaquetas.
Os glóbulos vermelhos
desempenham um papel importante pela substância que lhes dá a côr – a
hemoglobina, substância química de composição muito semelhante á clorofila das
plantas.
A quantidade de hemoglobina que
passa pelos pulmões num segundo é cêrca de dez gramas de substância e ao nível
dos capilares pulmonares fixa uma enorme quantidade de oxigénio, que conduz aos
tecidos e aí descarrega.
A composição química da hemoglobina
é como dissemos muito semelhante à clorofila das plantas, com a diferença que
na composição da clorofila entra o magnésio e na da hemoglobina – o ferro.
O sangue humano contém
aproximadamente 15 gramas de hemoglobina por 100c.c. e como a percentagem de
ferro na hemoglobina é de 0,336% a quantidade de metal em 100c.c. é de cerca de
50 miligramas e de 4 gramas no sangue total do corpo humano.
A quantidade de hemoglobina que
possue, em todo o seu sangue, um homem de altura e pêso médios, anda ao redor
de 1 quilograma.
O sangue total pode fixar perto
de 1200c.c. de oxigénio (200 c.c. por litro de sangue) e esta quantidade de
oxigénio é utilizada pelos tecidos num tempo de cinco minutos em estado de
repouso e numa simples fracção de minuto, durante o exercício muscular.
Importância de hemoglobina
Se por acaso não houvesse
hemoglobina no corpo humano e fosse o plasma encarregado de transportar o
oxigénio necessário à vida, quantos litros julgam os leitores que seriam
necessários?
Em vez de cinco a seis litros,
seriam necessários cerca de trezentos e cinquenta litros!
Ficaria o homem nesse caso com
um volume cinco vezes superior à média em geral, transformando-se quási num…
gigante Adamastor!
Os glóbulos vermelhos andam á
volta de 4,5 a 5 milhões por milímetro cúbico, diminuindo nos casos anémicos,
em geral na mesma proporção que a hemoglobina; em determinadas anemias esta
baixa paralela não se verifica, como acontece na anemia perniciosa.
Êste facto constitui até um
sinal importante de que os médicos se servem para orientação clinica. Os
glóbulos rubros podem aumentar em certas circunstâncias como acontece em
algumas doenças do sistema cardio-respiratório: enfisema, doença de Ayerza, em
certos envenenamentos, doenças congénitas do coração e policitemias ou
eritremias, em que a taxa por milímetro cúbico pode ser superior a 7 milhões e
mais.
Os glóbulos rubros ou
eritrócitos são formados na medula óssea – a que o povo vulgarmente chama o
tutano – e destruídos pelas células (macrófagos) do baço, pela acção de
substâncias hemolíticas do sangue ou por desintegração na corrente
circulatória.
Tem-se observado estudando a
perda diária de hemoglobina, que em estado normal se destroem perto de dez
milhões de glóbulos vermelhos por segundo, com consequente igual regeneração
pelos órgãos formadores do sangue. Os glóbulos brancos os leucócitos
distinguem-se facilmente dos vermelhos por não possuírem hemoglobina e conterem
um núcleo, enquanto que os glóbulos vermelhos dos vertebrados não têm núcleo,
com excepção apenas dos camelídios.
Exército defensor
Os glóbulos brancos são muito menos numerosos
que os vermelhos: a sua taxa oscila, em geral, entre 6000 a 8000 por milímetro
cúbico.
Na primeira infância
encontram-se valores bastantes superiores aos do adulto e até aos 7 ou 8 anos o
seu número é normalmente mais elevado.
A contagem dos glóbulos brancos
é de uma alta importância para os médicos, porque os orienta no diagnóstico de
muitas doenças.
Assim os glóbulos brancos
diminuem em algumas doenças como a febre tifóide, o sarampo, a febre-de-malta,
kala-azar, a anemia perniciosa, etc, e aumentam em muitas outras, sendo geral
êsse aumento em todos os estados inflamatórios e supurações.
Descoberto no final do século
XVIII por Spallanzani, o glóbulo branco começou a ser conhecido sob o ponto de
vista hematológico com Schultze, que lhe descreveu vários tipos, mas os
progressos só se fizeram quando Paul Erlich, o descobridor do 606, deu a
conhecer ao mundo científico os seus métodos de coloração ainda hoje seguidos
na rotina laboratorial para o exame de esfregaços de sangue.
Os glóbulos brancos ou
leucócitos são células semi-móveis de protoplasma contráctil semelhante ao das
amibas e que poe duas qualidades primordiais, denominadas amibismo e diapedese,
então particularmente aptos a entrarem em luta contra os microorganismos
invasores.
Foi o sábio russo Elias
Metchnikoff quem, pela primeira vez, notou esses fenómenos, designando essas
células sob o nome de fagócitos.
Os glóbulos brancos são,
portanto para o organismo humano uma espécie de oitavo exército na luta contra
os infinitamente pequenos…
Suponham, por exemplo, o caso
de uma apendicite: numa primeira fase há uma chamada de glóbulos brancos ao
nível da mucosa do apêndice inflamado (a testa de ponte) e umas horas depois a
medula óssea reage e entram precipitadamente na corrente circulatória um número
bastante elevado, por vezes ainda jovens, tal como uma chuva de paraquedistas
lançados com grande finalidade estratégica.
Mistérios da coagulação
Outros elementos figurados do
sangue muito importantes para a coagulação apresentam-se como pequenos corpos
redondos, ovais ou irregulares, de tamanho inferior aos glóbulos vermelhos e
denominam-se plaquetas, globulinos ou hematoblastos.
Já pensaram alguma vez como se
faz a coagulação do sangue? É um fenómeno bastante complexo cujo mecanismo
suscita ainda duvidas. A teoria geralmente aceite hoje pelos biologistas
compreende quatro elementos que se encontram no sangue normal: a tromboplastina
dêsses minúsculos corpos denominados plaquetas, a protrombina que se encontra
em solução na corrente sanguínea, fabricada no fígado á custa da vitamina K e o
cálcio. Estas três substâncias actuam entre si para formarem um quarto
elemento, a trombina, a qual, reagindo com o fibrinogénio do plasma, dá origem
à fibrina. É esta fibrina que, encerrando nas suas malhas os elementos
figurados do sangue, dá origem ao coágulo.
Por aqui se vê facilmente que
todos os estados patológicos com perturbações da coagulação sanguínea são
devidos a deficiências da tromboplastina, da protrombina, do cálcio ou do
fibrinogénio.
Decerto já ouviram falar na
hemofilia: é uma doença do sangue em que está seriamente retardada ou melhor
impossibilitada a perfeita coagulação sanguínea. A doença é hereditária e
ligada ao sexo (sex-linked) sendo transmitida pelas mulheres e sofrida pelos
varões.
Uma das maiores transmissoras
da hemofilia que a História nos relata foi a Rainha Vitória. Suas netas portadoras
da mesma doença, vieram depois continua-la; a princesa Vitória Eugénia casou
com o falecido rei Afonso XIII de Espanha transmitindo ao herdeiro do trono
espanhol, o príncipe Afonso das Astúrias a herança… de um tempo de coagulação
superior a uma hora!
O principe das Asturias faleceu
em 1939 na Florida vitimado por uma enorme hemorragia em consequência de um
desastre de automóvel.
Outra neta da Rainha Vitória, a
princesa Alexandra, casou com o Czar da Rússia, Nicolas III e o seu único filho
era também hemofílico. Felizmente para a corôa de Inglaterra, o filho mais
velho da Rainha Vitória, mais tarde Rei Eduardo VII, não herdou o fatídico
cromossoma X transmissor da doença e assim a casa de Windsor escapou à herança
maldita. Ainda não se sabe com segurança qual a causa da hemofilia; supõe-se no
entanto que seja devida a uma elevada resistência das plaquetas, que não se
desintegraram completamente, libertando a tromboquinase necessária para o
mecanismo da coagulação.
A coagulabilidade normal do
sangue anda ao redor de 5 a 8 minutos,
mas na hemofilia pode atingir uma hora e ainda mais!
Os grupos sanguíneos
Uma outra qualidade
interessante do sangue é a imutabilidade do grupo sanguíneo.
É provável que você já tenha
dado sangue para uma transfusão e lhe tenham verificado portanto o grupo.
Os grupos sanguíneos fôram
descritos pela primeira vez por Landsteiner que em 1900 – 1901 admitia já a
existência de quatro grupos.
A classificação internacional
hoje adoptada em todos os centros médicos é a seguinte: grupo O (dador
universal), grupo A, grupo B e grupo AB (receptor universal).
Como se reconhece o grupo
sanguíneo de um individuo?
Muito facilmente, usando sôros
testemunhas ou hemo-testes (anti-A) e (anti-B) e pondo em presença dêsses soros
os glóbulos vermelhos do dador ou do doente.
Se os glóbulos vermelhos não
são aglutinados por nenhum dêstes soros, o indivíduo pertence ao grupo O (dador
universal); se só são aglutinados os glóbulos pelo sôro (B) trata-se do grupo
(A), se a aglutinação se produz com o sôro (A) o indivíduo pertence ao grupo
(B) e no caso da aglutinação se verificar em presença de ambos os sôros,
estamos em face de um grupo (AB) – receptor universal.
O próprio recém-nascido tem já
segundo Riddel, um grupo sanguíneo que se mantém imutável em todas as
circunstâncias através da vida.
Tem-se observado algumas vezes
aglutininas transitórias que passam da mãe ao filho através da placenta, mas
estas aglutininas desaparecem, no entanto, passados alguns meses.
Para maior garantia na escôlha
de um grupo sanguíneo, deve fazer-se a prova cruzada que tem por objecto
demonstrar se os glóbulos vermelhos do dador se podem misturar com o sôro do
receptor e se a hematias ou glóbulos rubros do receptor se podem misturar com o
sôro do dador sem que produza hemólise ou aglutinação.
Esta prova serve para controlar
qualquer êrro na classificação do grupo sanguíneo e não deve portanto
omitir-se.
A característica de grupo não é
propriedade exclusiva dos glóbulos vermelhos mas existe em quási todas as
células do organismo com excepção das células cartilagíneas, ósseas, do
cristalino, corpo vítreo e cérebro.
Nos líquidos orgânicos também
se observam substância especificas de grupo como por exemplo no leite e na
urina, mas especialmente na saliva e no suco gástrico. No entanto só 70% dos
indivíduos possuem estas propriedades de grupo fora dos glóbulos vermelhos.
A maior percentagem de
indivíduos do grupo O enco9ntra-se na América e proximidades do Polo Norte. Na
Europa a maior percentagem pertence ao grupo (A) e na África e na Ásia ao grupo
(B).
O grupo (AB) é mais frequente
na Ásia, principalmente entre os Persas, onde atinge a percentagem de 18%
contra 5% apenas na Europa.
Numa gota de sangue existe,
portanto, um pequeno mundo, fisiológico: água, sais, variados componentes
minerais e orgânicos, hormonas e vitaminas, milhões de glóbulos vermelhos,
milhares de glóbulos brancos e como afirmou Carrel, «do ajustamento recíproco
das células e do meio dependem a saúde e a doença, a fôrça ou a fraqueza, a
felicidade ou infelicidade de cada um de nós».
Fonte: Revista Ver e Crer nº 2
Junho 1945
Texto: Dr. Egidio Chaves
Fotos da net
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