Ginástica dos Sentidos
O Kama Sutra é o trabalho antigo mais completo
sobre o amor e, talvez por isso , não perdeu actualidade nem deixou de se
multiplicar pelo mundo em inúmeras edições para diferentes públicos. Há sempre
algo novo a aprender: se não for o 69 vertical ou o carrinho de mão, que seja o
poder de um beijo vigoroso ou de umas boas dentadas.
Os homens não tiram o turbante, as mulheres
deixam ficar as jóias e o Kohl nos olhos para os enredar em mistério, mas tudo
o mais é despido de preconceitos, para que os amantes dêem largas ao desejo
amoroso que os consome. O sexo no Kama Sutra não é apenas sexo, por muito que
as cenas de penetração em piruetas acrobáticas possam sugerir o contrário.
Há as palavras murmuradas ao ouvido, o segredo
do abraço, os cheiros do outro, a técnica do beijo e das pressões, a sensação
escorregadia da pele suada, o sabor a sal do parceiro. Além de ser aceite como
o trabalho antigo, mais definitivo sob o amor na literatura sânscrita, o texto
indiano escrito por Vatsyayana no século IV é, sobretudo, uma receita (sutra)
para o gozo dos sentidos (kama). Talvez por isso se mantenha actual e seja
continuamente reeditado em todo o mundo, ora com mais prosa e as ilustrações
originais, ora com fotos recentes de casais modernos a provar que tudo aquilo é
possível, incluindo as cambalhotas num baloiço em andamento.
«Ao contrário do que muitos pensam, o Kama Sutra
não é um manual de sexo nem um trabalho sagrado ou religioso. Também não é um
texto tântrico», explica Indra Sinha, escritor anglo-indiano que, a partir da
década de 1980 se dedicou a estudar e a traduzir os ensinamentos amorosos dos
clássicos para dar a conhecê-los aos apaixonados ocidentais. No Kama Sutra há
capítulos sobre o amor físico e as posições sexuais a adoptar – são esses, de
facto, os mais conhecidos dos leitores -, mas também considerações gerais sobre
a busca de conhecimento, as prioridades da vida na época, o estímulo do desejo,
tipos de carícias, uso de unhadas, dentadas, estaladas e gemidos, sexo oral,
preliminares e remates, casamento, técnicas para relaxar e possuir a parceira,
deveres e privilégios da esposa favorita e de outras mulheres, formas de fazer
dinheiro e renovar amizades com antigos amantes, truques para melhorar a
atracção física e conseguir benefícios em proveito próprio, análise de
sentimentos, dicas para mobilar e decorar a casa, mezinhas para manter a
virilidade e até investidas para conquistar sem esforço as mulheres de outros
homens.
«O objectivo de Vatsyayana era definir a relação
completa entre um homem e uma mulher e, ao fazê-lo ofereceu-nos um relance
fascinante do quotidiano, da cultura e dos comportamentos no império gupta»,
sublinha Sinha. Naquele texto, faça-se o que se fizer – plantar um jardim ou
rebolar na alcova -, não existe lugar para o pecado ou a timidez. O orgasmo é
uma bênção dos deuses e não motivo de vergonha, a união de um casal considerada
divina. «O Kama Sutra é amoral do princípio ao fim: o que mais próximo dele
existe no Ocidente é Maquiavel», confirma o tradutor. Por outro lado, ao
retractar em pormenor o lugar que homens e mulheres ocupavam na sociedade, o
seu papel na hierarquia e a dinâmica dos poderes instituídos, acaba por ser
igualmente um tratado fiel á Índia antiga.
Uma ode ao amor
Segundo a versão integral do Kama Sutra das
Publicações Europa-América, inserida na colecção Grandes Clássicos Eróticos e
reproduzindo a versão inglesa da autoria de Sir Richard Burton e Forster
Fitzgerald Arbuthnot (publicada na Inglaterra em 1883), os aforismos sobre o
amor de Vatsyayana contêm cerca de 1250 versículos divididos em sete partes,
estas em 36 capítulos e estes em 64 parágrafos. Do autor sabe-se muito pouco,
apenas que o seu nome seria Mallinaga ou Mrillana, sendo Vatsyayana o nome de
família. Quanto ao livro está editado pela Relógio d’Água, Penguin Books,
Civilização Editora, Bertrand, Virgin Books, Gailivro, Asa, Albin Michel,
Madras, Eros Trading, Robinson Publishing, Wordsworth, Lustre Press, Brijbasi,
Contre-Dire, Hamlyn ou Octopus, entre muitas outras, em alguns casos mantendo a
versão integral, noutra adaptados por autores diversos de forma a caber em
manuais práticos, livros ilustrados de cabeceira, de bolso, exigências
modernas, técnicas clássicas, amor homossexual, escapadelas no escritório,
melhores posições e Kama Sutra na cama e fora dela. Todas as versões são
populares e, dizem os editores, têm sempre aceitação junto do público.
«Embora o Kama Sutra seja muito mais do que um
livro do que hoje se chamaria sexologia, continua a ser considerado o maior e
melhor manual do Mundo sobre sexo», explica o director editorial da
Europa-América, Francisco Lyon de Castro, justificando assim a adesão
generalizada ao longo dos tempos. «É difícil saber o que leva as pessoas a
comprarem tanto Kama Sutra, mas a verdade é que a edição ilustrada de Alicia
Galotti, a mais abrangente de todas as que tem feito, já vendeu mais de cem mil
exemplares e tem sido reeditada ao longo dos anos», confirma Maria João Costa,
editora do Livros d’Hoje (do grupo Leya), sustentando que o sexo continua a
vender mas não tanto como há três ou quatro anos. «Há quem compre o livro por
brincadeira ou para oferecer a alguém, há os que compram por curiosidade, para
saberem se existe algo que desconhecem sobre o tema e estão a perder alguma
coisa. E, aqui, o Novo Kama Sutra Ilustrado continua a ser o que vendemos mais,
talvez por ser o mais conhecido e ter imagens subtis», adianta a responsável,
referindo que Alicia Galotti, especializada em sexo e relações interpessoais,
escreveu outros livros que derivaram do primeiro (Kama Sutra Gay, Lésbico, do
Sexo Oral, para a Mulher e Outros) sem, contudo, terem a mesma procura.
«Até há 10 anos explorou-se tanto esta área que
as pessoas se cansaram um bocado. O grande boom de vendas ocorreu nos primeiros
anos, numa altura em que quase não havia livros de sexo em Portugal. Hoje em
dia já toda a gente satisfez a sua curiosidade e existe um grande manancial de
informação no mercado, é natural que as vendas também se dispersem», conclui
Maria João Costa. Em última análise, qualquer que seja a edição escolhida, o
livro vale a pena ser lido ainda que apenas uma vez: mesmo que o casal não faça
o pino, não fique suspenso sobre os braços nem consiga passar as pernas por
cima da cabeça do parceiro, os risinhos e a cumplicidade que a leitura
proporciona resultam em excelentes preliminares.
O tamanho conta
Vatsyayana revela que os homens se dividem entre
três classes – homem lebre, homem touro e homem cavalo – segundo o tamanho do
seu linga (o pénis, símbolo da energia criativa masculina), enquanto as
mulheres têm outras três categorias de acordo com a profundidade da Yoni (a
vagina): corça, égua e elefante fêmea. «Quando uma mulher vê que o amante está
fatigado por uma cópula prolongada sem que o seu desejo tenha sido satisfeito,
deve, com a permissão dele, deitá-lo de costas e ajuda-lo a desempenhar o seu
papel. Ela pode também fazê-lo para satisfazer a curiosidade do homem ou o seu
próprio desejo de inovação». Os actos que devem ser depois realizados pelo
homem, diz, são o movimento para a frente, friccionar ou bater, perfurar,
roçar, pressionar, desferir um golpe, os golpes do javali e do touro (quando o
linga roça apenas uma parte ou ambos os lados da yoni, respectivamente) e o
saltitar do pardal (quando o linga está dentro da yoni e se move frequentemente
para baixo e para cima sem ser retirado).
«Por muito reservada que seja a mulher e por
muito que oculte os seus sentimentos, quando se coloca sobre o homem, não pode
evitar que todo o seu amor e desejo se tornem evidentes. O homem deve concluir
pelo comportamento da mulher qual a disposição em que ela se encontra e de que
maneira gosta de ser gozada», aconselha Vatsyayana, lembrando sempre a
importância de não descurar pormenores como a música ou o canto, um bom copo
nas mãos, a conversa trivial e a segurança de um abraço para que os amantes
possam brincar na cama como antes brincaram com a comida. «As mulheres,
precisamente porque são de natureza terna, precisam de prelúdios ternos. O
homem deverá abordar a jovem segundo as preferências dela e adoptar os
procedimentos que lhe possibilitem insinuar-se cada vez mais na sua confiança.
Após a confiança dela ter aumentado, ele deve afagar-lhe o corpo com as mãos e
beijá-la por toda a parte, massajando-lhe as coxas e a junção. O homem deve
fazer estas coisas sobre vários pretextos, mas não iniciar a união sexual
propriamente dita, antes ensinar-lhe as sessenta e quatro artes, dizer-lhe
quanto a ama e descrever-lhe as esperanças que anteriormente alimentava em
relação a ela.» A revolução sexual dos anos sessenta relançou a importância do
Kama Sutra na literatura, nas artes, no cinema e na música, salientando as suas
inúmeras vertentes e afugentando desde então, muitos dos receios das pessoas
relativamente ao sexo. As várias interpretações do texto original ajudaram a
democratizá-lo, limaram as referências à especialidade da cultura indiana e converteram-no
em manual para os amantes que gostam de tirar o máximo partido das relações e
do amor. E se o contorcionismo pode ser bom para tonificar os músculos e
alongar a espinha, a obra é mais um tratado sobre como gozar a boa vida do que
uma competição pelo melhor desempenho.
Fonte: Revista Notícias Magazine
Texto: Ana Pago
Fotos da Net
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