quinta-feira, 3 de novembro de 2016

René Magritte

A Caixa negra de Magritte

O pintor surrealista que transfigurava objectos quotidianos, tem uma nova casa. Um museu com o seu nome, em Bruxelas, com alguns quadros que nunca reconheceríamos como “magrittianos”. A casa de um homem é como a sua alma: diversa


A metáfora arquitectónica assenta como uma luva a René. O Museu Magritte, inaugurado em Junho de 2006, é um grande edifício de linhas clássicas e janelas quadradas, dispostas em fileiras obedientes, que, no interior, se transfigura radicalmente em caixa negra. Como um cara e coroa a três dimensões. Um L’Empire des Lumières em escala rebentada.
Recordam-se deste quadro? Mostra a paisagem serena de uma rua, com uma casa semioculta no arvoredo, um céu de dia claro, pintado em cima, em baixo as cores de uma noite iluminada, por um candeeiro público. Um enigma pictório que levanta a pergunta «é isto possível?» aos espectadores. A realidade do mundo é, afinal, a aceitação do mistério, patente em muitos trabalhos do pintor. 

L’Empire des Lumières

L’Empire des Lumières está declinado em duas versões, uma de 1954, outra de 1961, na exposição patente no Museu: um mundo dividido em cinco andares, onde se  abriga a maior colecção de pinturas de René François Ghislain Magritte, o belga nascido na cidade de Lessines, a 21 de Novembro de 1898. Surrealista discreto, capaz de grandes rasgos.
Esse é o verdadeiro truque de prestidigitação, não a fachada renovada do antigo hotel Altenloh, na Place Royale. Nem as imagens mais conhecidas do artista que defendia que a realidade não era algo em que se pudesse confiar. Magritte desenhou objectos de contornos realistas em cenários oníricos, desarrumados em paradoxos ou contradições. 


Ele é  o artista que pintou um célebre cachimbo com a legenda Ceci N’est Pas une Pipe («Isto não é um cachimbo»). Não era um cachimbo, porque não se podia fumar com ele, linguagem provocatória para recordar que a   representação  de um objecto nunca é o próprio objecto. 

La Durée Poignarde

Dele são também os quadros em que um comboio fumegante sai de uma vulgar chaminé (La Durée Poignarde) desenhada a partir da que se encontrava na sala de estar da sua casa. 

Black Magic, 1945

Ou aqueles em que o corpo nu de uma mulher se funde num céu de nuvens brancas (Black Magic, 1945). Ou ainda as imagens em que homens de chapéu de coco e sobretudo descem dos céus ou se apresentam de rosto ausente ou tapado por uma maçã. Cite-se o pintor belga para ajustar os binóculos que permitem entender este universo: «Ver é um acto.» Ainda que o próprio René, enquanto estudante de artes, tinha ido visitar o Museu Ufizzi, em Florença, lá permanecendo apenas meia hora entre obras-primas e explicando que era bom, mas que «os postais também funcionavam».

Visitações

É de outra ordem o jogo de ilusão provocado pela visita ao excelente Museu Magritte. Não sai nem de uma cartola de mágico nem de um qualquer chapéu de coco. Revela-se na surpresa de encontrar coisas novas num universo que se pensava já decifrado, repetido e esgotado em muitos postais. Há lugar para a ampla divulgação, por exemplo, da sua obra gráfica, quando trabalhou com o irmão antes de o sucesso chegar, cartazes publicitários ou ilustrações para partituras de música, de surpreendente eficácia. Ou para uma selecção de retratos dedicados a  patronos e amigos, mulheres loiras bizarramente sorridentes, mecenas que lembram sábios gregos. Há até a encomenda da companhia aérea Sabena, um óleo que mostra uma pomba a sobrevoar uma pista de aterragem, em L’Oiseaux de Ciel (1966).

L’Oiseaux de Ciel (1966

No espaço, pontuado por fotografias e citações nas paredes do próprio Magritte, o artista é-nos  dado num permanente jogo de revelações e ocultações. Em recantos inesperados, há manuscritos e filmes de época mostrando as brincadeiras domésticas com os amigos e a mulher, Georgette – fiel a todas as horas, de quem o museu mostra retratos da jovem lindíssima que era. Por ela, doente em Bruxelas num período difícil em que a guerra devastava a Europa, Magritte virá do Sul de França onde se refugiara, a primeira parte da viagem feita de bicicleta. 

Georgette 

Com medo e remorso. Há , aqui, quadros que contam essa história: arbustos de aves feridas e mochos vigilantes, como os povos mal tratados; ou a leveza do grande pássaro de nuvens a sobrevoar um ninho de Le Retour (1940).

Le Retour (1940

Há que andar entre andares organizados cronologicamente, e entre as esquinas desta caixa negra para ver estas obras, muitas delas que não se associaram à sua produção fortemente inspirada no quotidiano – nem que seja no dos sonhos deste rapazinho de família pobre, que aos 12 anos descobriria o corpo da mãe, fazedora de chapéus, que se suicidara. Sobe-se pelo elevador, cujos andares se vão revelando partes de um corpo: primeiro piso, uns pés. Depois, joelhos, um sexo feminino, uns seios, até chegar a  um rosto de mulher, última paragem, o topo do seu mundo. É esse o lugar onde decorrerão as exposições temporárias do espólio vasto: aqui está a produção integral das obras de Magritte, desde os anos académicos até ao último trabalho que deixou incompleto. O pintor seria primeiro influenciado pelo  construtivismo até ter uma epifania, em 1923, ao conhecer o trabalho de Georges de Chirico – talvez o primeiro pintor a abrir caminho para o território dos sonhos. É fácil de ver esse impacto no quadro L’Homme du Large (1927), uma silhueta sem rosto. 

L’Homme du Large 1927

Influenciado pelo cinema e pela literatura de Poe, Stevenson e Fantomas, passa pelo chamado Período Negro. Mas Magritte descobriu-se Magritte depois, com o manifesto surrealista proclamado em 1924 por André Breton. E nós descobrimos outro Magritte, ainda depois da ruptura com o escritor francês.

Experiências

Magritte fará a sua própria interpretação do pensamento sem travões morais do surrealismo, mesmo estando próximo do movimento: por exemplo, convidava o grupo para baptizar os seus quadros.

La page Blanche 

La page Blanche foi alterado por causa deles: a lua crescente passou a ser uma lua cheia pintada sobre os ramos das árvores, coisa impossível. A ruptura, brutal com o surrealismo, foi provocada também por aquilo a que alguns chamam o Período Renoir de Magritte: quadros próximos do universo impressionista, de cores vivas e traços arrastado de pincel, sóis que giram como os girassóis de Van Gogh, mulheres arco-íris que descansam na relva, árvores narigudas e fantasistas como fábulas infantis. A raiva causada pelo repúdio originou o que é, no museu, uma parede de grande impacto: convulsão de caricaturas e borrões de tinta em cores ácidas mas sem alegria, alinhada em cerca de 40 quadros, feita por Magritte em menos de 15 dias, e a que se chamou o Período Vache. A inspiração foi buscá-la a uma subversão dos comics, na altura uma produção bem-comportada. Magritte olha para  artistas cáusticos, expressionistas antes de tempo. No fim da parede, há um quadro com outro tom: La Part du Feu (1948), o que se tem de abandonar para atingir algo de maior. 

La Part du Feu 1948

Uma mulher estende um prato a um homem deitado numa cama com um candelabro aos pés, alusão a uma última refeição. É-nos dito que talvez Magritte queira representar o funeral do surrealismo que ele tanto amou.
René Magritte defendia que as suas pinturas eram concebidas «como so sinais físicos da liberdade de pensamento». 

Le Domaine d’Arnheim 1962

E é em nome dessa liberdade, que no fim da caixa negra, atordoados por tantos símbolos e imagens oníricas, esmagados por esse quadro imenso da montanha  em forma de águia de Le Domaine d’Arnheim (1962) e confrontados com a palavra «rêve» («sonho») numa edificação de pedra em L’art de La Conversation(1950), é-nos lembrado que a interpretação que verdadeiramente interessa, e lhes interessava, é a de que olha. A nossa.

L’art de La Conversation 1950


Fonte: Revista Visão
Texto: Silvia Souto Cunha
Fotos : Revista Visão / Net
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