sábado, 19 de novembro de 2016

A espantosa inteligência dos animais


Há pouco tempo, passei uma manhã a tomar café com Kanzi. Foi ele quem me convidou, à sua habitual maneira arrevesada. Kanzi é um tipo de poucas falas – 384 palavras, numa contagem formal, embora provavelmente saiba mais algumas dezenas. Tem uma voz perfeitamente audível – clara, expressiva e muito alta. Mas não é especialmente bom a formar palavras. Nada de anormal, quando se é um bonobó, o parente mais próximo e sereno do chimpanzé.
Mesmo assim, Kanzi é conservador. Durante a maior parte do dia conserva uma espécie de glossário bem á mão, três folhas com centenas de símbolos coloridos que representam todas as palavras que lhe foram ensinadas pelos seus mentores ou aprendidas por ele próprio. Consegue construir pensamentos e frases, e até conjugar verbos, simplesmente apontando. As folhas incluem não apenas substantivos e verbos fáceis, como «correr» e «coçar», mas também palavras conceptuais como «de» e «mais tarde», e elementos gramaticais como as terminações para os gerúndios e pretéritos.


Kanzi sabe quebrar o gelo, antes de ir ao assunto. De modo que aponta para o ícone do café, no seu glossário. E, depois para mim. Chama então, pela primatóloga Sue Savage – Rumbaugh, investigadora do Great Ape Trust – o centro de investigação de Des Moines, no Lowa, onde Kanzi vive – e pelo supervisor de laboratório, Tyler Romine. Romine prepara quatro cafés e leva um a Kanzi, no seu recinto, por detrás de uma janela de plástico. O bonobó bebe – engole um trago, em boa verdade – e, como as nossas vozes são recolhidas por microfone, escuta o que dizemos.
«Dissemos-lhe que vinha cá um visitante», explica Savage – Rumbaugh. «Esta manhã, tem estado excitado e obstinado, e não conseguimos levá-lo para o quintal. Em troca, tivemos de negociar um pedaço de meloa.» Meloa ainda não faz parte da lista de palavras de Kanzi, pelo que o nosso amigo aponta para os símbolos de verde, amarelo e melancia. Quando provou couve, chamou-lhe «alface lenta», porque leva mais tempo a mastigar.


A Great Ape Trust, sem fins lucrativos, aloja sete bonobós, incluindo o filhote de Kanzi, Teco nascido a 1 de Junho de 2010. Kanzi não é o primeiro macaco a quem foi ensinada linguagem. Este centro adopta uma nova abordagem, criando macacos desde a nascença com linguagem falada e simbólica como característica constante dos seus dias. Tal como as mães humanas levam os bebés a passear e falam com eles sobre o que vêem, mesmo que a criança ainda não entenda, os cientistas deste centro também narram a vida aos seus bonobós. Com a ajuda dessa imersão total, os macacos aprendem a comunicar melhor, mais depressa e com maior complexidade.
Seja como for, Kanzi não está hoje interessado em falar muito, preferindo correr e saltar para mostrar os seus dotes físicos. «Bola», escolhe ele nas suas folhas do glossário, quando acaba o café. «Diga-lhe que a vai buscar», sugere-me Savage – Rumbaugh, mostrando-me onde estão os símbolos necessários na folha que tenho na mão. «Sim-eu-vou-caçar-a-bola», escolho lentamente. Caçar é uma palavra que Kanzi usa alternadamente com obter. Levo algum tempo a encontrar a bola num gabinete e, quando regresso, Savage-Rumbaugh pergunta verbalmente a Kanzi: «Estás pronto para jogar?» olha para nós sinistramente. «Passado pronto», indica.
Criaturas Conscientes
Os seres humanos têm uma relação plena com os animais. São nossos companheiros e nossos bens, membros da nossa família e nossos criados, nossos animais de estimação e nossas pestes. Adoramo-los e metemo-los em jaulas, admiramo-los e abusamos deles. E, claro, cozinhamo-los e comemo-los.
A nossa justificação sempre foi a de que podemos fazer com os animais o que quisermos porque eles não sofrem como nós. Não pensam, pelo menos de qualquer maneira significativa. Não se preocupam. Não têm sentido do futuro ou da sua própria mortalidade. Podem dedicar-se, mas não amam. Tanto quanto sabemos, podem nem ser conscientes. Para muita gente a Bíblia dá o argumento mais poderoso. Foi concedido aos seres humanos o «domínio sobre os animais do campo», e aí a discussão pode mais ou menos parar.
Mas as bermas que construímos entre nós e os animais estão a ser eliminados. Costumamos dizer que os seres humanos são os únicos animais que utilizam ferramentas. Então e os pássaros e macacos que sabemos que as usam? Os seres humanos são os únicos capazes de empatia e generosidade. E então os macacos que praticam a caridade e os elefantes que velam os seus mortos? Os seres humanos são os únicos que sentem alegria e conhecimento do futuro. Então e o estudo recentemente publicado, no Reino Unido, a mostrar que os porcos criados em ambientes confortáveis exigem optimismo, movendo-se em direcção a um novo som, em vez de fugirem temerosamente dele? E quanto aos seres humanos serem os únicos animais com linguagem? Kanzi explicar-nos-ia que não é verdade. Não basta, pois, estudar o cérebro dos animais, dizem agora os cientistas. Temos de conhecer a sua mente.


Já aceitamos que os macacos e os golfinhos são conscientes. E gostamos de pensar que os cães e os gatos também o são. Mas e os ratos? E uma mosca? Passa-se com eles alguma coisa? Um cérebro diminuto num animal simples tem o suficiente para controlar apenas as funções básicas do corpo? A nossa avaliação é, com frequência, toldada por sentimentos adquiridos em relação a uma dada espécie. É provável que uma barata não tenha menos poder cerebral do que uma borboleta, mas somos céleres a negar-lhe consciência, porque é uma espécie que nos repugna. Ainda assim, a maioria dos cientistas concorda que a consciência brilha mais intensamente nos humanos e em outros animais superiores, diluindo-se para uma luz vacilante e, por fim, para a escuridão, nos seres inferiores.
Embora o tamanho do cérebro tenha, por certo, alguma relação com a esperteza, muito mais se poderá aprender da sua estrutura. O pensamento superior tem lugar no córtex cerebral, a região mais evoluída do cérebro e que falta a muitos animais. Os mamíferos são membros do clube do córtex cerebral e, como regra, quanto maior e mais complexa se mostra essa região, mais inteligente é o animal. Mas não é a única via para o pensamento criativo. Veja-se a utilização de ferramentas, através das lontras: dominaram a tarefa de esmagar moluscos com pedras para chegar à carne que está lá dentro, o que, embora primitivo, conta. Mas se a criatividade reside no córtex cerebral, porque razão os corvídeos a classe de aves que inclui os corvos e os gaios, usam melhor as ferramentas do que quase todas as espécies não humanas? Os corvos, por exemplo revelam-se adeptos de dobrar arame para criar um gancho que possa pescar comida no fundo de um tubo de plástico. Mais notável, ainda, verificou-se que a gralha, uma ave da família dos corvos, conseguia raciocinar o suficiente para deitar pedras num recipiente parcialmente cheio de água, a fim de fazer subir o nível e poder saciar a sede.
O modo como as aves realizaram tal habilidade sem possuírem um córtex cerebral tem provavelmente a ver com uma região cerebral que partilham com os mamíferos: os gânglios basais, estruturas mais primitivas envolvidas na aprendizagem. Os gânglios basais dos mamíferos são feitos de várias estruturas, enquanto os das aves se resumem a uma. Sucede porém que o cérebro das aves é multifacetado, efectuando diferentes tarefas ao mesmo tempo. O resultado é igual, com a informação processada. Só que as aves atingem-no de maneira mais eficaz.


No caso dos corvídeos e de outros animais, o que pode activar ainda mais a inteligência é a estrutura, não do seu cérebro, mas das suas sociedades – sobretudo quanto à caça. Veja-se o rei dos animais. 


«Os leões fazem coisas extraordinárias», diz a bióloga Christine Drea, da Universidade de Duke. «Um animal coloca-se para a emboscada, e outro espanta a presa nessa direcção.» Mais impressionante, ainda, é a hiena. «Só por si, uma hiena pode derrubar um gnu, mas são precisas várias para deitar ao chão uma zebra», explica Christine Drea. «De modo que planeiam previamente o tamanho da presa e saem para caçar uma em particular. Decidem que vão caçar uma zebra. Ignoram até um gnu, se passarem por algum no caminho.»
É certamente significativo que os corvos sejam as aves mais hábeis e sociais, com longas e estáveis ligações ao grupo. Também é elucidativo que os animais de manada, como as vacas e os búfalos, exibam pouca inteligência. Embora vivam colectivamente, a sua sociedade tem reduzida forma. «Numa manada de búfalos, o Manel não quer saber quem é a Maria», diz Drea. «Mas entre os primatas, carnívoros sociais, baleias e golfinhos, cada indivíduo tem o seu próprio lugar.»

Nós e os outros

A teoria da mente revela-se essencial para a comunicação e a autoconsciência – e alguns animais mostram-na. Os cães têm o entendimento inato do que significa apontar: há alguém com informação para partilhar e que está a chamar a sua atenção para que possa aprender também. Parece simples, mas só porque nascemos com essa capacidade e, a propósito, temos dedos para apontar. Os grandes macacos, apesar do seu impressionante intelecto e mãos com cinco dedos, não parecem programados de fábrica para apontar. Mas pode, tão só, faltar-lhe a oportunidade de o fazer. Um macaco bebé raramente se afasta da mãe, agarrando-se ao seu abdómen. Mas Kanzi, que foi criado em cativeiro, andou muitas vezes nos braços de seres humanos, e teve assim as mãos livres para comunicar.
Apontar não é o único indicador de uma espécie inteligente que adquire a teoria da mente. 


Os gaios azuis – outro corvídeo – escondem alimentos para usarem mais tarde, e têm muito cuidado com a possibilidade de animais intrusos os estarem a ver. Se notar que foi observado, o gaio espera que o outro animal se afaste, e depois dissimula a comida num sítio diferente. Compreende, pois, que a outra criatura tem mente – e manipula-a.
O padrão ouro para demonstrar uma compreensão da distinção entre nós e os outros é o teste do espelho. Ou seja, se um animal consegue ver o seu reflexo e reconhecer o que é. Pode ser adorável ver um gato observar-se num espelho e correr para o outro lado em busca do imaginário companheiro. Mas não é sinal de grande cabeça. Os elefantes, os macacos, e os golfinhos são das poucas criaturas que conseguem passar o teste do espelho. Os três reagem apropriadamente, depois de ter sido aplicada uma marca na tinta na sua testa ou noutra parte do corpo. Os macacos e os elefantes irão tocar na marca com o dedo ou com a tromba, em vez de tentarem chegar ao reflexo. Os golfinhos colocam-se de maneira a verem melhor o reflexo da marca.
Se os animais podem raciocinar – mesmo de uma forma que consideremos rude -, a questão inevitável passa a ser: podem sentir? Sentirão empatia ou compaixão? Podem amar, preocupar-se, ansiar ou ter desgosto? E o que diz sobre o modo como os tratamos? São perguntas armadilhadas a que a Ciência não pode furtar-se.


Os elefantes parecem chorar os seus mortos, debruçando-se sobre um companheiro inerte com aparente desgosto. Os macacos também ficam durante dias perto do corpo sem vida de um dos seus. A empatia para com os membros vivos da mesma espécie não é, igualmente, novidade. 


«Quando os ratos estão em sofrimento, os companheiros que o vêem começam também a contorcer-se, partilhando a dor», diz Marc Hauser, professor de Psicologia e Biologia Antropóloga, em Havard. «Não precisamos de Neurobiologia para concluir que isso sugere consciência.» Já Frans de Waal, do Centro Nacional Yerkes de Investigação de Primatas, em Atlanta, coordenou um estudo em que macacos mostravam gosto em oferecer comida a companheiros, desde que fossem familiares ou, pelo menos, conhecidos. Estamos bem perto de pesquisas no cérebro humano, que revelam actividade nos centros de recompensa de alguém que concretiza u ato de solidariedade.


O glossário de Kanzi inclui, aliás, palavras como «bom» e «feliz», «ser» e «amanhã». Se é verdade que todos estes termos têm significado para ele, então a sua vida – e, por extensão, a de outros animais – pode ser rica e valer a pena.

Fonte: Revista Visão
Texto: Jeffrey Kluger
Fotos da net
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