Há pouco tempo, passei uma
manhã a tomar café com Kanzi. Foi ele
quem me convidou, à sua habitual maneira arrevesada. Kanzi é um tipo de poucas falas – 384 palavras, numa contagem
formal, embora provavelmente saiba mais algumas dezenas. Tem uma voz
perfeitamente audível – clara, expressiva e muito alta. Mas não é especialmente
bom a formar palavras. Nada de anormal, quando se é um bonobó, o parente mais
próximo e sereno do chimpanzé.
Mesmo assim, Kanzi é
conservador. Durante a maior parte do dia conserva uma espécie de glossário bem
á mão, três folhas com centenas de símbolos coloridos que representam todas as
palavras que lhe foram ensinadas pelos seus mentores ou aprendidas por ele
próprio. Consegue construir pensamentos e frases, e até conjugar verbos,
simplesmente apontando. As folhas incluem não apenas substantivos e verbos
fáceis, como «correr» e «coçar», mas também palavras conceptuais como «de» e
«mais tarde», e elementos gramaticais como as terminações para os gerúndios e
pretéritos.
Kanzi sabe
quebrar o gelo, antes de ir ao assunto. De modo que aponta para o ícone do
café, no seu glossário. E, depois para mim. Chama então, pela primatóloga Sue
Savage – Rumbaugh, investigadora do Great Ape Trust – o centro de investigação
de Des Moines, no Lowa, onde Kanzi
vive – e pelo supervisor de laboratório, Tyler Romine. Romine prepara quatro
cafés e leva um a Kanzi, no seu recinto, por detrás de uma janela de plástico.
O bonobó bebe – engole um trago, em boa verdade – e, como as nossas vozes são
recolhidas por microfone, escuta o que dizemos.
«Dissemos-lhe que vinha cá um
visitante», explica Savage – Rumbaugh. «Esta manhã, tem estado excitado e
obstinado, e não conseguimos levá-lo para o quintal. Em troca, tivemos de
negociar um pedaço de meloa.» Meloa ainda não faz parte da lista de palavras de
Kanzi, pelo que o nosso amigo aponta
para os símbolos de verde, amarelo e melancia. Quando provou couve, chamou-lhe
«alface lenta», porque leva mais tempo a mastigar.
A Great Ape Trust, sem fins
lucrativos, aloja sete bonobós, incluindo o filhote de Kanzi, Teco nascido a 1 de Junho de 2010. Kanzi não é o primeiro
macaco a quem foi ensinada linguagem. Este centro adopta uma nova abordagem,
criando macacos desde a nascença com linguagem falada e simbólica como
característica constante dos seus dias. Tal como as mães humanas levam os bebés
a passear e falam com eles sobre o que vêem, mesmo que a criança ainda não
entenda, os cientistas deste centro também narram a vida aos seus bonobós. Com
a ajuda dessa imersão total, os macacos aprendem a comunicar melhor, mais
depressa e com maior complexidade.
Seja como for, Kanzi não está
hoje interessado em falar muito, preferindo correr e saltar para mostrar os
seus dotes físicos. «Bola», escolhe ele nas suas folhas do glossário, quando
acaba o café. «Diga-lhe que a vai buscar», sugere-me Savage – Rumbaugh,
mostrando-me onde estão os símbolos necessários na folha que tenho na mão.
«Sim-eu-vou-caçar-a-bola», escolho lentamente. Caçar é uma palavra que Kanzi
usa alternadamente com obter. Levo algum tempo a encontrar a bola num gabinete
e, quando regresso, Savage-Rumbaugh pergunta verbalmente a Kanzi: «Estás pronto
para jogar?» olha para nós sinistramente. «Passado pronto», indica.
Criaturas Conscientes
Os seres humanos têm uma
relação plena com os animais. São nossos companheiros e nossos bens, membros da
nossa família e nossos criados, nossos animais de estimação e nossas pestes.
Adoramo-los e metemo-los em jaulas, admiramo-los e abusamos deles. E, claro,
cozinhamo-los e comemo-los.
A nossa justificação sempre foi
a de que podemos fazer com os animais o que quisermos porque eles não sofrem
como nós. Não pensam, pelo menos de qualquer maneira significativa. Não se
preocupam. Não têm sentido do futuro ou da sua própria mortalidade. Podem
dedicar-se, mas não amam. Tanto quanto sabemos, podem nem ser conscientes. Para
muita gente a Bíblia dá o argumento mais poderoso. Foi concedido aos seres
humanos o «domínio sobre os animais do campo», e aí a discussão pode mais ou
menos parar.
Mas as bermas que construímos
entre nós e os animais estão a ser eliminados. Costumamos dizer que os seres
humanos são os únicos animais que utilizam ferramentas. Então e os pássaros e
macacos que sabemos que as usam? Os seres humanos são os únicos capazes de
empatia e generosidade. E então os macacos que praticam a caridade e os
elefantes que velam os seus mortos? Os seres humanos são os únicos que sentem
alegria e conhecimento do futuro. Então e o estudo recentemente publicado, no
Reino Unido, a mostrar que os porcos criados em ambientes confortáveis exigem
optimismo, movendo-se em direcção a um novo som, em vez de fugirem
temerosamente dele? E quanto aos seres humanos serem os únicos animais com
linguagem? Kanzi explicar-nos-ia que não é verdade. Não basta, pois, estudar o
cérebro dos animais, dizem agora os cientistas. Temos de conhecer a sua mente.
Já aceitamos que os macacos e
os golfinhos são conscientes. E gostamos de pensar que os cães e os gatos
também o são. Mas e os ratos? E uma mosca? Passa-se com eles alguma coisa? Um
cérebro diminuto num animal simples tem o suficiente para controlar apenas as
funções básicas do corpo? A nossa avaliação é, com frequência, toldada por
sentimentos adquiridos em relação a uma dada espécie. É provável que uma barata
não tenha menos poder cerebral do que uma borboleta, mas somos céleres a
negar-lhe consciência, porque é uma espécie que nos repugna. Ainda assim, a
maioria dos cientistas concorda que a consciência brilha mais intensamente nos
humanos e em outros animais superiores, diluindo-se para uma luz vacilante e,
por fim, para a escuridão, nos seres inferiores.
Embora o tamanho do cérebro
tenha, por certo, alguma relação com a esperteza, muito mais se poderá aprender
da sua estrutura. O pensamento superior tem lugar no córtex cerebral, a região
mais evoluída do cérebro e que falta a muitos animais. Os mamíferos são membros
do clube do córtex cerebral e, como regra, quanto maior e mais complexa se
mostra essa região, mais inteligente é o animal. Mas não é a única via para o
pensamento criativo. Veja-se a utilização de ferramentas, através das lontras:
dominaram a tarefa de esmagar moluscos com pedras para chegar à carne que está
lá dentro, o que, embora primitivo, conta. Mas se a criatividade reside no
córtex cerebral, porque razão os corvídeos a classe de aves que inclui os
corvos e os gaios, usam melhor as ferramentas do que quase todas as espécies
não humanas? Os corvos, por exemplo revelam-se adeptos de dobrar arame para
criar um gancho que possa pescar comida no fundo de um tubo de plástico. Mais
notável, ainda, verificou-se que a gralha, uma ave da família dos corvos,
conseguia raciocinar o suficiente para deitar pedras num recipiente
parcialmente cheio de água, a fim de fazer subir o nível e poder saciar a sede.
O modo como as aves realizaram
tal habilidade sem possuírem um córtex cerebral tem provavelmente a ver com uma
região cerebral que partilham com os mamíferos: os gânglios basais, estruturas
mais primitivas envolvidas na aprendizagem. Os gânglios basais dos mamíferos
são feitos de várias estruturas, enquanto os das aves se resumem a uma. Sucede
porém que o cérebro das aves é multifacetado, efectuando diferentes tarefas ao
mesmo tempo. O resultado é igual, com a informação processada. Só que as aves
atingem-no de maneira mais eficaz.
No caso dos corvídeos e de
outros animais, o que pode activar ainda mais a inteligência é a estrutura, não
do seu cérebro, mas das suas sociedades – sobretudo quanto à caça. Veja-se o
rei dos animais.
«Os leões fazem coisas extraordinárias», diz a bióloga
Christine Drea, da Universidade de Duke. «Um animal coloca-se para a emboscada,
e outro espanta a presa nessa direcção.» Mais impressionante, ainda, é a hiena.
«Só por si, uma hiena pode derrubar um gnu, mas são precisas várias para deitar
ao chão uma zebra», explica Christine Drea. «De modo que planeiam previamente o
tamanho da presa e saem para caçar uma em particular. Decidem que vão caçar uma
zebra. Ignoram até um gnu, se passarem por algum no caminho.»
É certamente significativo que
os corvos sejam as aves mais hábeis e sociais, com longas e estáveis ligações
ao grupo. Também é elucidativo que os animais de manada, como as vacas e os
búfalos, exibam pouca inteligência. Embora vivam colectivamente, a sua
sociedade tem reduzida forma. «Numa manada de búfalos, o Manel não quer saber
quem é a Maria», diz Drea. «Mas entre os primatas, carnívoros sociais, baleias
e golfinhos, cada indivíduo tem o seu próprio lugar.»
Nós e os outros
A teoria da mente revela-se
essencial para a comunicação e a autoconsciência – e alguns animais mostram-na.
Os cães têm o entendimento inato do que significa apontar: há alguém com
informação para partilhar e que está a chamar a sua atenção para que possa
aprender também. Parece simples, mas só porque nascemos com essa capacidade e,
a propósito, temos dedos para apontar. Os grandes macacos, apesar do seu
impressionante intelecto e mãos com cinco dedos, não parecem programados de
fábrica para apontar. Mas pode, tão só, faltar-lhe a oportunidade de o fazer.
Um macaco bebé raramente se afasta da mãe, agarrando-se ao seu abdómen. Mas
Kanzi, que foi criado em cativeiro, andou muitas vezes nos braços de seres
humanos, e teve assim as mãos livres para comunicar.
Apontar não é o único indicador
de uma espécie inteligente que adquire a teoria da mente.
Os gaios azuis –
outro corvídeo – escondem alimentos para usarem mais tarde, e têm muito cuidado
com a possibilidade de animais intrusos os estarem a ver. Se notar que foi
observado, o gaio espera que o outro animal se afaste, e depois dissimula a
comida num sítio diferente. Compreende, pois, que a outra criatura tem mente –
e manipula-a.
O padrão ouro para demonstrar
uma compreensão da distinção entre nós e os outros é o teste do espelho. Ou
seja, se um animal consegue ver o seu reflexo e reconhecer o que é. Pode ser
adorável ver um gato observar-se num espelho e correr para o outro lado em
busca do imaginário companheiro. Mas não é sinal de grande cabeça. Os
elefantes, os macacos, e os golfinhos são das poucas criaturas que conseguem
passar o teste do espelho. Os três reagem apropriadamente, depois de ter sido
aplicada uma marca na tinta na sua testa
ou noutra parte do corpo. Os macacos e os elefantes irão tocar na marca com o
dedo ou com a tromba, em vez de tentarem chegar ao reflexo. Os golfinhos
colocam-se de maneira a verem melhor o reflexo da marca.
Se os animais podem raciocinar
– mesmo de uma forma que consideremos rude -, a questão inevitável passa a ser:
podem sentir? Sentirão empatia ou compaixão? Podem amar, preocupar-se, ansiar
ou ter desgosto? E o que diz sobre o modo como os tratamos? São perguntas
armadilhadas a que a Ciência não pode furtar-se.
Os elefantes parecem chorar os
seus mortos, debruçando-se sobre um companheiro inerte com aparente desgosto.
Os macacos também ficam durante dias perto do corpo sem vida de um dos seus. A
empatia para com os membros vivos da mesma espécie não é, igualmente, novidade.
«Quando os ratos estão em sofrimento, os companheiros que o vêem começam também
a contorcer-se, partilhando a dor», diz Marc Hauser, professor de Psicologia e
Biologia Antropóloga, em Havard. «Não precisamos de Neurobiologia para concluir
que isso sugere consciência.» Já Frans de Waal, do Centro Nacional Yerkes de
Investigação de Primatas, em Atlanta, coordenou um estudo em que macacos
mostravam gosto em oferecer comida a companheiros, desde que fossem familiares
ou, pelo menos, conhecidos. Estamos bem perto de pesquisas no cérebro humano,
que revelam actividade nos centros de recompensa de alguém que concretiza u ato
de solidariedade.
O glossário de Kanzi inclui,
aliás, palavras como «bom» e «feliz», «ser» e «amanhã». Se é verdade que todos
estes termos têm significado para ele, então a sua vida – e, por extensão, a de
outros animais – pode ser rica e valer a pena.
Fonte: Revista Visão
Texto: Jeffrey Kluger
Fotos da net
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