Pode correr-se o risco de se ficar esmagado
pelo gozo de gozar em gozo. O calão permite-se quando está em causa o melhor da
vida. Isto é, uma capital excêntrica com nome de mulher e Rainha – Victória -,
águas semi-virgens do Mediterrâneo e terra de cavaleiros do templo. Uma das
três ilhas do arquipélago de Malta, o lugar imaginado da utopia.
Se numa noite
de verão o viajante subir à Cidadela de Gozo, verá divisar-se, entre as nuvens
de pó que se erguem na planície, a figura mística do quinto cavaleiro. Como um
mensageiro de Deus ou um anjo (ou uma alma penada), este virá montado num
possante corcel, oculto por um longo manto e a dobra espessa do turbante.
Quando o vento acalmar e a investida e as
patas empinadas lhe estiverem a dois palmos do nariz, o viajante fará uma vénia
e subirá para o dorso musculado do corcel, levantando do chão apenas pelo sopro
vulcânico da terra.
Antes de o sol nascer, e no tempo de um
pestanejar, acordará deitado num tapete de Damasco e diante dos seus olhos
pasmados terá no lugar de ouro, incenso e mirra, ou de um burro, uma vaca e um
charolês, a sublime visão de Malta. É neste clima épico que se pronuncia a
fantasia. Diz-se que os malteses herdaram o melhor dos ingleses, o que está
patente na arquitectura das casas, na pontualidade, na gastronomia – as tartes
são um prato recorrente – ou na língua que usam como mãe.
Mais recentemente, as
noções de aculturação estendem-se ao futebol e as ruas de Gozo e Malta
encheram-se de sósias de David Beckham. Assim, rapaz que preze a virilidade usa
patilhas com madeixas, muda de penteado dia sim, dia não e sonha em ter uma
namorada de nome Victória, uma rainha ocidental com voz de cotovia. Talvez isso
explique a metamorfose das raparigas, que se juntam aos grupinhos para ensaiar
temas da pop inglesa vestidas como as Doce nos seus tempos áureos, como se o
seu futuro sentimental e a hipótese de constituir família dependessem do
talento para as cantigas.
Depois há as senhoras de meia-idade e as
avós com caras – e bigodes – de lobo mau, que olham de lado estes excessos,
pesarosas de as filhas e netinhas trocarem promissora carreira no convento por
um espectáculo tão deprimente. Tudo se passa na rua e o momento é risível. Mas,
se pergunto a Maria – uma das muitas Marias da terra – se se importa com os
maneirismos da neta, só comenta que gostava mais de vê-la na igreja a ajudar o
padre-cura na missa ou a cursar catequese. Parece medieval, mas é o que é. Os
tempos mudam, porém. Os filhos e netos malteses preferem hoje imaginar-se nos
palcos de concertos de musica, nos estádios de futebol – onde nunca lograram
sucesso – ou nas salas de cinema com o cabedal de Brad Pitt e os penteados de
David Beckham.
(O Exterior da Catedral de Assumption))
O fervor religioso foram busca-lo aos
italianos, os únicos que os superam na proporção de igrejas por habitante. Dos
turcos consta que a herança está no poder de encaixe… das bebidas pesadas. E se
numa noite de verão o viajante se deita à varanda depois de um dia inteiro de
romaria, ocorre-lhe pensar que a religião é o ópio do povo e o povo, é quem
mais ordena, e o que lhe apetece, afinal, é demolhar as papilas num Lavagulin
ou fumar ervas por um cachimbo de água. (O Interior da Catedral de Assumption na Cidadella em Victória)
(O Interior da Catedral de Assumption na Cidadella em Victória)
Um daqueles cachimbos de essências
lúbricas dos souks do Cairo que depois de fumados deixam um homem santo. E nada
é impossível de conseguir se até um reluzente disco de vinil dos Abba lhe foi
dado comprar no mercado de Gharb, em Victória, ou um escafandro untado de um
verdete falso posto à pressa nessa manhã e que o hábil vendedor o tentou
convencer ter sido pertença de um marujo de Drake.
(Basílica de St. George's)
(Interior da Basílica de St. George's)
Onde andaria o Drake quando
Malta era potência do Mediterrâneo e vespeiro onde todos procuravam assentar o
ferrão? Ainda se fosse de algum corsário fariseu a soldo de Filipe II… De
resto, para animar em Malta não faltarão pretextos: das rotas esotéricas do
glorioso Corto Maltese, aos trilhos dos cavaleiros da Grã Ordem, das farras
olímpicas possíveis em qualquer taverna de estrada e a qualquer hora aos mais
selectos restos de paleta mediterrânica, como o impagável Sultan, um grego cipriota
rendido aos ares malteses, com tabanca posta nos areais de Comino.
Nota Histórica
Malta é habitada desde cerca de 5200 a.C.,
durante o Neolítico. Os primeiros achados arqueológicos datam aproximadamente
de 3800 a.C. Existiu nas ilhas uma civilização pré-histórica significativa
antes da chegada dos fenícios, que baptizaram a ilha principal Malat, o que
significa refúgio seguro.
Os agricultores neolíticos viveram sobretudo em
cavernas e produziram uma cerâmica similar à encontrada na Sicília. Entre 2400
e 2000 a.C., desenvolveu-se um elaborado culto aos mortos, possivelmente
influenciado pelas culturas das ilhas Ciclades e de Micenas (idade do bronze).
Essa cultura foi destruída por uma invasão, provavelmente vinda do Sul da
Itália. Por volta do ano 1000ª.C. as ilhas eram uma colónia fenícia. Em 736
a.C. foram ocupados pelos gregos e posteriormente passaram a ser domínio dos
cartagineses (400 a.C.), e depois dos romanos (218 a. C.), quando recebeu o
nome de Melita.
(Estatuetas Neolíticas Xaghra)
Segundo a lenda nos Actos dos Apóstolos, no ano 60 da era
Cristã, São Paulo naufragou e chegou à costa maltesa, onde promoveu a conversão
dos seus habitantes. A partir desta data, os malteses aderiram ao Cristianismo
e permanecem-lhe fiéis até hoje. Com a divisão do Império Romano em 395 d.C., a
zona leste da ilha foi cedida ao domínio de Constantinopla (Império do
Oriente).
( Estes templos em Xaghra, Gozo, são dos mais importantes sítios arqueológicos em Malta. As origens de Ggantija remontam à data de (3600-3200 a.C).
O Império Bizantino controlou-a até 870, quando foi conquistada pelos
árabes muçulmanos, que influenciaram o seu idioma e cultura. Após a conquista
árabe, Malta foi convertida ao islamismo. A
Influência árabe pode ser encontrada na moderna língua maltesa, uma
língua fortemente romanizada que deriva do árabe vernáculo.
(Círculo de pedra de Xaghra)
As Ilhas que fazem parte da União
A Republica de Malta é composta por um
arquipélago de cinco ilhas muito próximas, situadas a 93 km do sul da Ilha da
Sicília, a Sudoeste da Itália, e a 290km ao Norte da Líbia, na África. Está
situada no centro do Mediterrâneo. As cinco ilhas do arquipélago maltês são:
Malta, Gozo, Comino, e duas ilhas desabitadas, Cominatto e Filfla, as quais, no
total, têm uma superfície de 316km2 e abrigam uma população estimada em 400 214
habitantes. A Republica de Malta passou a fazer parte da EU – União Europeia –
a partir de 2004.
A terra de Corto Maltese
Entre os ilustres nativos malteses, o herói
da banda desenhada Corto (Maltese) mantém a sua popularidade intacta. O
viajante deve munir-se de notas biográficas de Hugo Pratt (‘O desejo de ser
Inútil’, edições Relógio d’água) e fazer-se ás estradas, cavernas, grutas,
rochedos, mares…
Muitas missas e festas
O Arquipélago maltês é um dos lugares com
mais religiosos praticantes por metro quadrado. Recomenda-se ao visitante ateu
ou beato que assista pelo menos a uma missa, e se for em época de festas, que
acompanhe o corso ou a romaria.
Fonte: Revista Domingo
Texto: Tiago Salazar
Fotos da net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð