Museu Alberto Sampaio
«Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades.» O poeta Camões escreveu-o há séculos e o verso não deixa
de ser uma afirmação pejada de contemporaneidade. O povo por seu turno, di-lo
de forma mais seca: «A tradição já não é o que era.»
Não é, nem poderia ser,
pois tudo o que fica pela tradição acaba por morrer. Por isso, recuperar e
valorizar a tradição acrescentando-lhes elementos contemporâneos é o que está
na base do projecto dos Lenços Enamorados, que teve ínicio em 2012 em Guimarães
e que se prolongou até 2014.
Na génese do projecto
liderado pela Câmara de Guimarães e pelo Museu Alberto Sampaio está a revitalização do Bordado de Guimarães através da antiga
tradição minhota dos Lenços dos Namorados, que aqui ganhou outra denominação.
Nos dias que correm, a
troca de presentes entre namorados é comum e quase sem significado, tendo-se
mesmo instituído um dia dedicado ao namoro, precisamente o 14 de Fevereiro que amanhã se assinala.
De conversados a namorados
Porém, há cerca de 155
anos, as coisas eram bastantes diferentes e nem sequer de namorados se falava.
Os relacionamentos amorosos eram mais discretos e contidos e o que realmente
acontecia eram conversas, daí que à época os namorados fossem designados por
«conversados».
É então que surge a
tradição dos Lenços dos Namorados, que resistiu até inícios do século XX,
caindo em desuso com o advento da modernidade. Por altura da oficialização da
relação, a rapariga oferecia um lenço bordado por si ao seu «conversado», que
este passava a usar como sinal de compromisso.
«Os motivos bordados eram
normalmente florais, integrando imagens relacionadas com o amor, com o coração
ou as setas, para além de um poema. Há lenços muito trabalhados, mas também
alguns muito simples, com um pequeno bordado num dos cantos e o resto liso»,
explica Maria José Meireles, investigadora do Museu Alberto Sampaio.
Esta é uma tradição que
tem raízes no Minho, mas que se estende um pouco por todo o país.
Emprestar
contemporaneidade à secular tradição é, segundo todos os intervenientes no
projecto vimaranense, a única forma de esta sobreviver ao passar dos anos.
Assim através da recriação desta tradição, na versão dos Lenços dos Namorados,
relembra-se a história e preserva-se a arte de recamar de Guimarães.
«Só valorizamos o passado
se o catapultarmos para o futuro», sustenta Francisca Abreu, vereadora da
Cultura da autarquia de Guimarães, responsável por A Oficina, entidade que há anos trabalha na
recuperação e valorização do bordado de Guimarães.
«Quando começamos a trabalhar
e a investigar o Bordado de Guimarães, pensámos que uma forma de o manter vivo
era também trazê-lo para a contemporaneidade, deixando de fazer aquele lenço
dos namorados a que estávamos habituados e que continha sempre erros de
português», recorda Isabel Fernandes, directora do Museu Alberto Sampaio,
prosseguindo: «Então, criámos os Lenços Enamorados, com poesia do melhor que
temos na língua portuguesa e desenhos de artistas plásticos consagrados, a fim
de serem trabalhados com o bordado de Guimarães.»
Dois por ano
A
iniciativa entronca na criação de 14 lenços, numa evocação do dia 14 de
Fevereiro, Dia dos Namorados. Inicialmente, o projecto tinha por objectivo a
exibição dos 14 lenços num único acto, mas os responsáveis optaram pela apresentação de dois lenços por ano,
prolongando a iniciativa até 2014. Tentando revitalizar uma outra tradição
vimaranense, os responsáveis decidiram que Dezembro era a altura ideal para
promover a iniciativa, coincidindo com as festividades em honra de Santa Luzia,
em que tradicionalmente as raparigas oferecem as «passarinhas» aos namorados e
estes os «sardões» às pretendidas. Refira-se que sardões e passarinhas são um
doce local feito de açúcar em forma dos pequenos répteis e aves.
«A
tradição só se mantém se se for incorporando elementos novos, senão as pessoas
não se identificam», assevera a vereadora vimaranense, justificando a escolha
dos poetas e artistas plásticos que participaram no projecto, que já deu à
estampa quatro Lenços Enamorados. Até ao momento assinaram trabalhos os poetas
António Ramos Rosa e Casimiro de Brito (2008), Albano Martins e Fernando
Guimarães (2009), e os artistas plásticos José de Guimarães e João Machado
(2008) e, na última edição, Joana Vasconcelos e Helena Cardoso.
Para
esta última, o convite foi uma honra e um orgulho, mas as restrições, que se
prendem com as normas da tradição, cercearam-lhe a criatividade. «O que queria
era fazer do Lenço Enamorado uma peça de escultura», começa por referir a
também estilista, acrescentando: «Isso é que era um desafio… Com os mesmos
bordados e a mesma tradição, que são as silvas e os poemas de amor, deviam
deixar-nos sem normas…»
Para
a criadora, «O tamanho do lenço foi restritivo, pois queria fazer uma coisa
muito maior, com outra visualidade, e se calhar não era quadrado. Depois seria
todo branco, porque Portugal, a nível de bordado, tem um lugar fantástico no
Mundo. Poucos países bordam como nós, a branco».
«Para
morrer não era necessário a morte. Bastava o teu corpo.» Foi sobre este poema
de Albano Martins que Helena Cardoso trabalhou o seu lenço: «Segui as normas,
fui buscar as silvas, que são o entrelaçar do amor, mas depois tive uma
dificuldade, quando descobri que o poema era erótico.»
Já
para a bordadeira Adélia Faria, que corporizou as ideias de Helena Cardoso,
esta foi «uma experiência riquíssima». Para a bordadeira, que pela segunda vez
trabalha com a estilista depois de bordar umas roupas para um desfile, este
«foi um trabalho exigente, mas muito aliciante».
À
jovem artista Joana Vasconcelos calhou o estimulante poema de Fernando
Guimarães: «Podemos encontrar em tudo o que esperamos um fruto só que exista na
direcção dos ramos.»
Por
seu turno, a bordadeira Isabel Oliveira, responsável pela execução do lenço,
não regateia encómios à iniciativa: «É um prazer enorme e este trabalho mais
contemporâneo dá-nos mais gozo, tanto nesta colecção dos Lenços Enamorados que
começamos em 2008, como também noutros trabalhos que nos encomendam.»
Renovar
a tradição
Para
a Investigadora Maria José Meireles, que actualmente desenvolve um profundo
estudo sobre os têxteis da região, «a iniciativa dos Lenços Enamorados tenta
não só recuperar a tradição, como o bordado de Guimarães, mas também estimular
a criatividade, senão as coisas morrem. Se as coisas se mantêm imutáveis acabam
por desaparecer».
Uma
aliança de metal precioso, um peluche, um telemóvel ou outro qualquer gadget,
sinal dos tempos do progresso tecnológico que se vivem, são as trocas mais
frequentes entre enamorados, mas a tentativa de preservar uma tradição como a
dos Lenços dos Namorados, mais ainda quando, como está a fazer a secular cidade
de Guimarães, se lhe empresta o cunho da modernidade, é um trunfo para a
riqueza de qualquer povo.
«Todas
as tradições, de carácter poético ou plástico, devem ser sempre renovadas,
porque há um espírito novo do tempo e as artes devem estar sempre vivas e a
acompanhar as pessoas», sustenta Firmino Mendes, responsável pela escolha dos
poetas para o projecto.
A
Palavra aos poetas
Firmino
Mendes, poeta vimaranense actualmente a viver em Lisboa, foi o escolhido para
seleccionar os 14 criadores que emprestaram os seus «poemas de amor, não
extensos e que, de preferência, fugissem ao esquema da quadra». Sem critérios
específicos, Firmino Mendes escolheu poetas de língua portuguesa consagrados,
sem qualquer distinção geográfica, mas que representassem a universalidade da
língua de Fernando Pessoa. A lista integra os nomes de Agripina Costa Marques,
Albano Martins, Ana Luísa Amaral, Ana Paula Tavares (Angola), António Ramos Rosa,
Arménio Vieira (Cabo Verde), Carlos Poças Falcão, Casimiro de Brito, Fernando
Guimarães, Firmino Mendes, Luís Carlos Patraquim (Moçambique), Manuel António
Pina e Silva Chueire (Brasil). Para o poeta Fernando Guimarães, esta é uma
forma de «comunicação estimulante, porque tende para o amor», deixando ainda
uma palavra sobre a iniciativa: «Guimarães encontra nas linhas dos bordados as
linhas que a ligam ao passado.» Amantes incorrigiveis, os poetas encontram nas
palavras mais banais a beleza do amor e da eternidade, como fez, para um lenço
em 2008, António Ramos Rosa: «Na tua luz eu descubro/O meu verdadeiro fundo/Se
eu te perdesse a ti/Perderia o sol do mundo.»
Um
fio que vem do Século XIX
O
que hoje é conhecido como bordado de Guimarães tem raízes no século XIX e nasce
da apropriação pelas mulheres do povo de uma arte até aí quase exclusiva das
classes nobres e da burguesia. A origem reside no bordado a branco – que
segundo a estilista e artista plástica Helena Cardoso é uma riqueza ímpar de
Portugal – quando as lavradeiras sentiam necessidade de adornar o vestuário,
especialmente o domingueiro, dando-lhe
magnificência e maior ostentação. «As mulheres do povo vão aproveitar os
pontos mais volumosos desse bordado a branco e começam a bordar consoante a sua
própria sensibilidade e sem regras», conta Maria José Meireles, investigadora
do Museu Alberto Sampaio, de Guimarães, referindo que este não é um bordado
muito cuidado, pois «elas enchiam quase o pano todo com ponto muito cheio,
exuberante, volumoso, repetitivo e assimétrico». As lavradeiras passam a bordar
as camisas dos maridos a branco e os coletes para elas, geralmente, a vermelho,
apesar de usarem ainda outras cores.
Até
aos nossos dias o bordado de Guimarães passou por diversas fases e não pode dizer-se
que seja um bordado contínuo, que foi evoluindo – passou por várias épocas e da
miscelânea dessas influências a tradições é que surge o bordado actual. Após a
apropriação do bordado pelo povo, a chegada da industrialização, em finais do
século XIX, leva a uma quebra de importância do bordado, «pois muitas das
lavradeiras vão trabalhar para as fábricas», explica a investigadora. É nesta
altura que as senhoras da cidade começam também a bordar, salvando o bordado da
extinção. Com os linhos da industrialização surgem nas lojas os atoalhados e
demais têxteis para o lar «com um bordado que mais tarde se começou a chamar de
Guimarães», revela.
Com
as lavradeiras nas fábricas, as empresas recorrem às casas de bordados da Lixa,
que fazem um bordado ligeiramente diferente, ao mesmo tempo que algumas das
lavradeiras mais velhas continuam a fazer o bordado de memória, sem grandes
regras, como afinal ele tinha nascido e resistido ao tempo.
Já
em plena época nacionalista do século XX, a Escola Francisco de Holanda passa a
leccionar no curso de formação feminina a disciplina de Lavores, o que vai
aperfeiçoar e normalizar o bordado de Guimarães. A espontaneidade e a enorme
criatividade de que o bordado viveu até meados do século passado são, então,
restringidas. E como alguns dos professores eram originários de Viana do
Castelo, o bordado vimaranense sofre nova influência vizinha, desta feita do
bordado feito na cidade da foz do Lima. É um período de fraco progresso do
bordado de Guimarães, que finalmente tem regras definidas: monocromia, podendo
utilizar-se apenas cinco cores (branco, vermelho, azul, preto e bege), 21
pontos definidos e feito com linha de algodão. Quanto a motivos, o bordado
vimaranense nunca fez escola, sendo predominantes os motivos rurais e os geométricos
feitos ao sabor da sensibilidade e saber de cada bordadeira.
Com
a Revolução de 25 de Abril de 1974 e o advento da Liberdade e da igualdade
entre os sexos, o bordado sofre nova quebra, uma vez que as mulheres rejeitam
as aulas de lavores. Então, nos anos 1980, por altura da candidatura de
Guimarães a Património da Humanidade, a Câmara promove cursos de artesanato, um
dos quais de bordados. «As professoras são as antigas alunas da Escola
Francisco de Holanda e o resultado é um bordado mais perfeito, fruto do
amadurecimento de todas as influências que sofreram enquanto alunas», conta
Maria José Meireles.
A
nova vida do bordado de Guimarães, entretanto certificado pela autarquia, é
assegurada por bordadeiras que passaram por esses cursos e que aplicam o
bordado, já não tanto em atoalhados, mas em vestidos de cerimónias, como de
noiva e de baile, e ainda noutras peças tradicionais e mais pequenas, como
lenços, bomboneiras, naperons, marcadores de livros e suportes para utensílios
de cozinha, entre muitas outras.
Hoje,
Isabel Oliveira, maria Conceição Pereira e Adélia Faria são as três bordadeiras
que alimentam a loja d’A Oficina, estrutura criada pela Câmara para divulgar as
artes tradicionais de Guimarães, e que continuam a bordar um fio que vem desde
o século XIX e que tenta ganhar nova vida.
Fonte:
Revista Notícias Magazine 14 /02/2010
Texto/Autor:
Pedro Vasco Oliveira
Fotos da net
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