segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Lenços enamorados


Museu Alberto Sampaio 

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.» O poeta Camões escreveu-o há séculos e o verso não deixa de ser uma afirmação pejada de contemporaneidade. O povo por seu turno, di-lo de forma mais seca: «A tradição já não é o que era.»
Não é, nem poderia ser, pois tudo o que fica pela tradição acaba por morrer. Por isso, recuperar e valorizar a tradição acrescentando-lhes elementos contemporâneos é o que está na base do projecto dos Lenços Enamorados, que teve ínicio em 2012 em Guimarães e que se prolongou até 2014.
Na génese do projecto liderado pela Câmara de Guimarães e pelo Museu Alberto Sampaio está  a revitalização  do Bordado de Guimarães através da antiga tradição minhota dos Lenços dos Namorados, que aqui ganhou outra denominação.
Nos dias que correm, a troca de presentes entre namorados é comum e quase sem significado, tendo-se mesmo instituído um dia dedicado ao namoro, precisamente o 14 de Fevereiro que amanhã se assinala.


 De conversados a namorados

Porém, há cerca de 155 anos, as coisas eram bastantes diferentes e nem sequer de namorados se falava. Os relacionamentos amorosos eram mais discretos e contidos e o que realmente acontecia eram conversas, daí que à época os namorados fossem designados por «conversados».
É então que surge a tradição dos Lenços dos Namorados, que resistiu até inícios do século XX, caindo em desuso com o advento da modernidade. Por altura da oficialização da relação, a rapariga oferecia um lenço bordado por si ao seu «conversado», que este passava a usar como sinal de compromisso.


«Os motivos bordados eram normalmente florais, integrando imagens relacionadas com o amor, com o coração ou as setas, para além de um poema. Há lenços muito trabalhados, mas também alguns muito simples, com um pequeno bordado num dos cantos e o resto liso», explica Maria José Meireles, investigadora do Museu Alberto Sampaio.
Esta é uma tradição que tem raízes no Minho, mas que se estende um pouco por todo o país.
Emprestar contemporaneidade à secular tradição é, segundo todos os intervenientes no projecto vimaranense, a única forma de esta sobreviver ao passar dos anos. Assim através da recriação desta tradição, na versão dos Lenços dos Namorados, relembra-se a história e preserva-se a arte de recamar de Guimarães.


«Só valorizamos o passado se o catapultarmos para o futuro», sustenta Francisca Abreu, vereadora da Cultura da autarquia de Guimarães, responsável por  A Oficina, entidade que há anos trabalha na recuperação e valorização do bordado de Guimarães.
«Quando começamos a trabalhar e a investigar o Bordado de Guimarães, pensámos que uma forma de o manter vivo era também trazê-lo para a contemporaneidade, deixando de fazer aquele lenço dos namorados a que estávamos habituados e que continha sempre erros de português», recorda Isabel Fernandes, directora do Museu Alberto Sampaio, prosseguindo: «Então, criámos os Lenços Enamorados, com poesia do melhor que temos na língua portuguesa e desenhos de artistas plásticos consagrados, a fim de serem trabalhados com o bordado de Guimarães.»



Dois por ano

A iniciativa entronca na criação de 14 lenços, numa evocação do dia 14 de Fevereiro, Dia dos Namorados. Inicialmente, o projecto tinha por objectivo a exibição dos 14 lenços num único acto, mas os responsáveis optaram pela  apresentação de dois lenços por ano, prolongando a iniciativa até 2014. Tentando revitalizar uma outra tradição vimaranense, os responsáveis decidiram que Dezembro era a altura ideal para promover a iniciativa, coincidindo com as festividades em honra de Santa Luzia, em que tradicionalmente as raparigas oferecem as «passarinhas» aos namorados e estes os «sardões» às pretendidas. Refira-se que sardões e passarinhas são um doce local feito de açúcar em forma dos pequenos répteis e aves.


«A tradição só se mantém se se for incorporando elementos novos, senão as pessoas não se identificam», assevera a vereadora vimaranense, justificando a escolha dos poetas e artistas plásticos que participaram no projecto, que já deu à estampa quatro Lenços Enamorados. Até ao momento assinaram trabalhos os poetas António Ramos Rosa e Casimiro de Brito (2008), Albano Martins e Fernando Guimarães (2009), e os artistas plásticos José de Guimarães e João Machado (2008) e, na última edição, Joana Vasconcelos e Helena Cardoso.
Para esta última, o convite foi uma honra e um orgulho, mas as restrições, que se prendem com as normas da tradição, cercearam-lhe a criatividade. «O que queria era fazer do Lenço Enamorado uma peça de escultura», começa por referir a também estilista, acrescentando: «Isso é que era um desafio… Com os mesmos bordados e a mesma tradição, que são as silvas e os poemas de amor, deviam deixar-nos sem normas…»


Para a criadora, «O tamanho do lenço foi restritivo, pois queria fazer uma coisa muito maior, com outra visualidade, e se calhar não era quadrado. Depois seria todo branco, porque Portugal, a nível de bordado, tem um lugar fantástico no Mundo. Poucos países bordam como nós, a branco».
«Para morrer não era necessário a morte. Bastava o teu corpo.» Foi sobre este poema de Albano Martins que Helena Cardoso trabalhou o seu lenço: «Segui as normas, fui buscar as silvas, que são o entrelaçar do amor, mas depois tive uma dificuldade, quando descobri que o poema era erótico.»
Já para a bordadeira Adélia Faria, que corporizou as ideias de Helena Cardoso, esta foi «uma experiência riquíssima». Para a bordadeira, que pela segunda vez trabalha com a estilista depois de bordar umas roupas para um desfile, este «foi um trabalho exigente, mas muito aliciante».

À jovem artista Joana Vasconcelos calhou o estimulante poema de Fernando Guimarães: «Podemos encontrar em tudo o que esperamos um fruto só que exista na direcção dos ramos.»


Por seu turno, a bordadeira Isabel Oliveira, responsável pela execução do lenço, não regateia encómios à iniciativa: «É um prazer enorme e este trabalho mais contemporâneo dá-nos mais gozo, tanto nesta colecção dos Lenços Enamorados que começamos em 2008, como também noutros trabalhos que nos encomendam.»

Renovar a tradição

Para a Investigadora Maria José Meireles, que actualmente desenvolve um profundo estudo sobre os têxteis da região, «a iniciativa dos Lenços Enamorados tenta não só recuperar a tradição, como o bordado de Guimarães, mas também estimular a criatividade, senão as coisas morrem. Se as coisas se mantêm imutáveis acabam por desaparecer».


Uma aliança de metal precioso, um peluche, um telemóvel ou outro qualquer gadget, sinal dos tempos do progresso tecnológico que se vivem, são as trocas mais frequentes entre enamorados, mas a tentativa de preservar uma tradição como a dos Lenços dos Namorados, mais ainda quando, como está a fazer a secular cidade de Guimarães, se lhe empresta o cunho da modernidade, é um trunfo para a riqueza de qualquer povo.
«Todas as tradições, de carácter poético ou plástico, devem ser sempre renovadas, porque há um espírito novo do tempo e as artes devem estar sempre vivas e a acompanhar as pessoas», sustenta Firmino Mendes, responsável pela escolha dos poetas para o projecto.



A Palavra aos poetas



Firmino Mendes, poeta vimaranense actualmente a viver em Lisboa, foi o escolhido para seleccionar os 14 criadores que emprestaram os seus «poemas de amor, não extensos e que, de preferência, fugissem ao esquema da quadra». Sem critérios específicos, Firmino Mendes escolheu poetas de língua portuguesa consagrados, sem qualquer distinção geográfica, mas que representassem a universalidade da língua de Fernando Pessoa. A lista integra os nomes de Agripina Costa Marques, Albano Martins, Ana Luísa Amaral, Ana Paula Tavares (Angola), António Ramos Rosa, Arménio Vieira (Cabo Verde), Carlos Poças Falcão, Casimiro de Brito, Fernando Guimarães, Firmino Mendes, Luís Carlos Patraquim (Moçambique), Manuel António Pina e Silva Chueire (Brasil). Para o poeta Fernando Guimarães, esta é uma forma de «comunicação estimulante, porque tende para o amor», deixando ainda uma palavra sobre a iniciativa: «Guimarães encontra nas linhas dos bordados as linhas que a ligam ao passado.» Amantes incorrigiveis, os poetas encontram nas palavras mais banais a beleza do amor e da eternidade, como fez, para um lenço em 2008, António Ramos Rosa: «Na tua luz eu descubro/O meu verdadeiro fundo/Se eu te perdesse a ti/Perderia o sol do mundo.»

Um fio que vem do Século XIX



O que hoje é conhecido como bordado de Guimarães tem raízes no século XIX e nasce da apropriação pelas mulheres do povo de uma arte até aí quase exclusiva das classes nobres e da burguesia. A origem reside no bordado a branco – que segundo a estilista e artista plástica Helena Cardoso é uma riqueza ímpar de Portugal – quando as lavradeiras sentiam necessidade de adornar o vestuário, especialmente o domingueiro, dando-lhe  magnificência e maior ostentação. «As mulheres do povo vão aproveitar os pontos mais volumosos desse bordado a branco e começam a bordar consoante a sua própria sensibilidade e sem regras», conta Maria José Meireles, investigadora do Museu Alberto Sampaio, de Guimarães, referindo que este não é um bordado muito cuidado, pois «elas enchiam quase o pano todo com ponto muito cheio, exuberante, volumoso, repetitivo e assimétrico». As lavradeiras passam a bordar as camisas dos maridos a branco e os coletes para elas, geralmente, a vermelho, apesar de usarem ainda outras cores.
Até aos nossos dias o bordado de Guimarães passou por diversas fases e não pode dizer-se que seja um bordado contínuo, que foi evoluindo – passou por várias épocas e da miscelânea dessas influências a tradições é que surge o bordado actual. Após a apropriação do bordado pelo povo, a chegada da industrialização, em finais do século XIX, leva a uma quebra de importância do bordado, «pois muitas das lavradeiras vão trabalhar para as fábricas», explica a investigadora. É nesta altura que as senhoras da cidade começam também a bordar, salvando o bordado da extinção. Com os linhos da industrialização surgem nas lojas os atoalhados e demais têxteis para o lar «com um bordado que mais tarde se começou a chamar de Guimarães», revela.
Com as lavradeiras nas fábricas, as empresas recorrem às casas de bordados da Lixa, que fazem um bordado ligeiramente diferente, ao mesmo tempo que algumas das lavradeiras mais velhas continuam a fazer o bordado de memória, sem grandes regras, como afinal ele tinha nascido e resistido ao tempo.


Já em plena época nacionalista do século XX, a Escola Francisco de Holanda passa a leccionar no curso de formação feminina a disciplina de Lavores, o que vai aperfeiçoar e normalizar o bordado de Guimarães. A espontaneidade e a enorme criatividade de que o bordado viveu até meados do século passado são, então, restringidas. E como alguns dos professores eram originários de Viana do Castelo, o bordado vimaranense sofre nova influência vizinha, desta feita do bordado feito na cidade da foz do Lima. É um período de fraco progresso do bordado de Guimarães, que finalmente tem regras definidas: monocromia, podendo utilizar-se apenas cinco cores (branco, vermelho, azul, preto e bege), 21 pontos definidos e feito com linha de algodão. Quanto a motivos, o bordado vimaranense nunca fez escola, sendo predominantes os motivos rurais e os geométricos feitos ao sabor da sensibilidade e saber de cada bordadeira.
Com a Revolução de 25 de Abril de 1974 e o advento da Liberdade e da igualdade entre os sexos, o bordado sofre nova quebra, uma vez que as mulheres rejeitam as aulas de lavores. Então, nos anos 1980, por altura da candidatura de Guimarães a Património da Humanidade, a Câmara promove cursos de artesanato, um dos quais de bordados. «As professoras são as antigas alunas da Escola Francisco de Holanda e o resultado é um bordado mais perfeito, fruto do amadurecimento de todas as influências que sofreram enquanto alunas», conta Maria José Meireles.


A nova vida do bordado de Guimarães, entretanto certificado pela autarquia, é assegurada por bordadeiras que passaram por esses cursos e que aplicam o bordado, já não tanto em atoalhados, mas em vestidos de cerimónias, como de noiva e de baile, e ainda noutras peças tradicionais e mais pequenas, como lenços, bomboneiras, naperons, marcadores de livros e suportes para utensílios de cozinha, entre muitas outras.
Hoje, Isabel Oliveira, maria Conceição Pereira e Adélia Faria são as três bordadeiras que alimentam a loja d’A Oficina, estrutura criada pela Câmara para divulgar as artes tradicionais de Guimarães, e que continuam a bordar um fio que vem desde o século XIX e que tenta ganhar nova vida.

Fonte: Revista Notícias Magazine 14 /02/2010
Texto/Autor: Pedro Vasco Oliveira
Fotos da net
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