Um Génio raro
Cientista excepcional, militar brilhante, grande administrador: mas
o que fez de D. João de Castro um caso raro foi, sobretudo, a sua indiferença
perante as riquezas materiais.
Viveu apenas 48 anos de 1500 a 1548, segundo se julga, embora não
haja uma certeza absoluta quanto ao ano de nascimento. É , em todo o caso, bem
pouco tempo, se comparado com tudo o que este homem fez, sempre ao serviço da
coroa, primeiro no Norte de África e depois na Índia, de que foi governador e
vice-rei.
Ainda hoje, para todos aqueles que retêm na memória um pouco da história
Portuguesa, D. João de Castro é uma figura familiar. Sobretudo por causa do
segundo cerco de Diu, que ficou famoso, e após o qual ele quis dar a própria
barba como penhor de um empréstimo destinado a reconstruir a fortaleza, que
ficara completamente destruída. Mas, justamente porque o episódio não está
esquecido, não vamos insistir sobre Diu nem sobre os outros feitos militares de
D. João de Castro; focaremos antes, aqueles aspectos, hoje menos conhecidos, da
sua vida e da sua personalidade, a começar pelos trabalhos científicos,
sobretudo nos domínios da geografia e das ciências náuticas.
TINGIS,LVSITANIS,TANGIARA
(Tânger, a gravura de Braun e Hogenberg de 1572, foi a praça onde o futuro 14.º governador e 4.º vice-rei da Índia se estreou nas armas e onde mereceu a distinção de ser armado cavaleiro.)
Diga-se antes de mais, que este homem recebeu, na infância e na
adolescência, uma excelente educação; tal como o infante D. Luís, irmão de D.
João III, teve, entre outros mestres, o muito célebre Pedro Nunes. No entanto a
ciência, para ele, teria de esperar: como qualquer outro moço fidalgo,
frequentador da corte (o pai era governador da Casa do Cível e vedor da fazenda
real), a sua primeira actividade foi guerreira e desenrolou-se no norte de
África – ele próprio escreveu, aliás, que “em África me nasceram as barbas”.
Foi para lá com 18 anos e só regressou
nove anos mais tarde, mas já era então alguém: reconhecendo o seu valor, D.
Duarte de Meneses, governador de Tânger, armara-o cavaleiro e recomendara-o por
carta a D. João III. Cumpriu depois outras missões navais e militares; e
finalmente, em 1538, embarcou para a Índia na armada do vice-rei D. Garcia de
Noronha, seu cunhado, que devia ir socorrer Diu, prestes a sofrer o primeiro
cerco.
Viagem científica
Segundo se pensa, esta missão de D. João de Castro era mais
científica do que militar. Haveria diversas matérias em cujo estudo a coroa
portuguesa estava interessada – entre elas, a determinação rigorosa das longitudes
e latitudes em alto mar e a qualquer hora do dia, uma questão com incidências
políticas e diplomáticas porque estava em causa a delimitação das áreas de
influência de Portugal e Castela no Oriente, em cumprimento do tratado de
Tordesilhas; e esta era apenas uma parte do “programa” científico dessa
primeira viagem para a Índia.
Três dos desenhos incluidos por D. João de Castro nos seus famosos "roteiros"
(Porto de Dabul)
(Rio e povoação de Chaul)
(Ilustração do roteiro de Goa a Diu)
No seu cumprimento, a actividade de D. João de
Castro, a bordo do navio Grigo, foi verdadeiramente espantosa: observou e
descreveu fenómenos naturais, aves e peixes; estudou o regime dos ventos e as
correntes; descobriu algo da maior importância, ou seja, que as agulhas das
bússolas sofrem desvios quando se encontram na proximidade de massas metálicas
– o que acontecia facilmente num navio profusamente guarnecido de peças de artilharia.
E com tudo isto e muito mais, recolheu os elementos que lhe permitiram elaborar
o primeiro dos seus célebres roteiros, itinerários acompanhados de mapas,
ilustrações e informações diversas, que ainda hoje impressionam quem os estuda.
Esse roteiro inicial, De Lisboa a Goa (1538), foi imediatamente
seguido por outro, De Goa a Diu (1538-1539), o que tem uma clara lógica; depois
de a armada do novo vice-rei chegar a Goa, os turcos decidiram levantar o cerco
a Diu, mas D. Garcia de Noronha quis, ainda assim, deslocar-se até lá e D. João
de Castro acompanhou-o, comandando uma galé; deste modo, teve a oportunidade de
prosseguir o seu trabalho cartográfico. Quanto ao terceiro roteiro que chegou
até nós (pois terá havido um outro que se perdeu), elaborou-o quando após a
morte de D. Garcia, o seu sucessor no governo da Índia, D. Estêvão da Gama –
filho de Vasco da Gama, comandou uma expedição a Suez para tentar destruir as
naus turcas. Esse objectivo não foi conseguido, porém da viagem, em que D. João
de Castro comandou o galeão Coulão Novo, sairia, como ficou dito, mais um
roteiro, de Goa a Suez, também conhecido como Roteiro do Mar Roxo (1541).
Todos estes trabalhos não são, evidentemente, best-sellers da
literatura light mas, nos meios científicos, deram ao seu autor uma reputação,
a nível europeu, de grande cientista – hidrógrafo, cartógrafo, observador e,
até, filósofo.
Os amigos
O rei D. João III (em cima, a sua estátua em Coimbra) sempre reconheceu o valor de D. João de Castro. Por isso o nomeou como vice-rei.
(O Infante D. Luís, irmão do rei D. João III, foi um amigo de toda a vida)
Um homem tão Excepcional teve também amigos excepcionais.
Mencione-se o infante D. luís, um dos príncipes mais inteligentes que houve em
Portugal; e o ilustre Pedro Nunes, não só o seu mestre, mas também um amigo.
O célebre matemático Pedro Nunes, foi mestre de D. João de castro e, mais tarde seu amigo
Outros amigos eram o Conde de Castanheira, o melhor ministro de D. João III, e
D. Rodrigo Pinheiro, que foi arcebispo de Braga. Na Índia, D. João de Castro
viria a suscitar a amizade e a ardente admiração de D. Cristóvão da Gama, o
jovem filho do navegador, que viria a morrer na Etiópia.
E, no fim da sua vida,
travou forte amizade com S. Francisco Xavier; este foi um dos seus confessores
que assistiram ao seu pensamento.
(S. Francisco Xavier assistiu aos últimos momentos do vice-rei)
Qualidade rara
Quando D. João de Castro regressou à Índia, que entretanto deixara
em Janeiro de 1542 para voltar a
Portugal, talvez não previsse que regressaria em breve aquela terra, dessa vez
como governador – nomeação que terá
aceite a contragosto, julga-se que por insistência do infante D. Luís. Era um
cargo espinhoso e de muitos trabalhos; ele desempenou-o no entanto com brio e
ânimo: Em breve teve de enfrentar nova ameaça da praça de Diu – foi o tão
celebrado segundo cerco, em que D. João perdeu o seu segundo filho, D.
Fernando: Depois de ter libertado a praça e derrotado decisivamente o inimigo,
e depois de ter iniciado as obras de reconstrução da fortaleza – a história das
barbas… -, regressou a Goa onde entrou à maneira dos antigos triunfadores
romanos, com a maior pompa e circunstância que se possa imaginar. Mas,
seguramente, este triunfo à romana era simplesmente ditado por razões
políticas; porque também muito
seguramente a nossa história conhece bem poucos chefes militares que fossem tão
ascéticos, tão indiferentes à ostentação, tão modestos nos seus hábitos como
este homem que pouco comia, ainda menos dormia, que em campanha vivia como
qualquer soldado e que se gastava em trabalho – terão sido, aliás, estes
excessos de renúncia, esta dureza para consigo próprio, que apressaram o seu
fim.
Feitas as contas, os nós governo da Índia durou somente cerca de
três anos, porém esse período foi muito rico em acontecimentos – e, vamos lá,
em heroísmo. Já no final, veio de Lisboa ordem real que lhe prolongava o
mandato, mas agora com a dignidade de vice-rei D. João de Castro gozou esta
dignidade durante escasso tempo: morreu a 6 de Junho de 1548, assistido, nos
seus últimos momentos, por S. Francisco Xavier.
Sim: apesar de tudo, apesar dos “fumos da Índia”, esse ainda era um
tempo de heróis e de santos…
A Renúncia ao Ouro
Esta foi a característica mais extraordinária de um homem que teve
inúmeras oportunidades para enriquecer. De regresso do seu serviço de nove anos
em Tânger, não pediu ao rei qualquer mercê. Em 1535, quando Carlos V lançou uma
ofensiva contra Tunis, com o auxílio Português, D. João de Castro tomou parte
da expedição, com o infante D. Luís. No final, o imperador resolveu pagar dois
mil ducados a cada capitão, mas ele recusou-se a receber esta quantia. Recusou
também, na sua primeira partida para a Índia, a capitania de Ormuz. É verdade
que aceitara, antes, a comenda de Salvaterra, mas fê-lo, ao que parece, somente
pela honra, já que o proveito – ou seja, o rendimento – era muito reduzido.
Tanto quanto se sabe, apenas pediria ao rei uma mercê: algum terreno em Sintra,
para “arredondar”, digamos assim, a área da sua quinta da Penha Verde, que era
património herdado.
(A Quinta da Penha Verde em Sintra, era o principal património de D. João de Castro e também o seu refúgio)
Por outro lado, o episódio da barba, dada como penhor, tem
uma explicação: na época a barba era um símbolo de honra e de prestígio
varonil; ora, ao terminar o cerco de Diu, D. João de Castro não tinha consigo
nem fortuna nem valores, porque gastara tudo na defesa e na governação da
Índia.
(A Ermida de Nossa Senhora do Monte, mandada construir na quinta por D. João)
Só tinha a honra para dar como penhor. Enfim, já pouco antes da sua
morte, teve de pedir que a administração lhe fixasse um pequeno subsídio para
se manter, pois gastara, mais uma vez, todos os seus fundos em navios,
armamento, etc.
Fonte: Revista Super Interessante
Por: João Aguiar
Carlos Coelho