quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Um Português Rei do Pegú

Salvador Ribeiro de Sousa

Um português rei do Pegú

No rico país da Birmania, onde até há pouco ardeu cruenta a guerra e, no seu govêrno de Pegú, foi outrora Rei um grande Capitão português.
Alma de aventureiro gentil-homem, coração ardente, sequioso de aventuras que lhe mitigassem as ansiedades de glória, Salvador Ribeiro de Sousa largara da sua aldeia de Quintães, de Entre Douro e Minho, para Militar na Índia com dois dos seus irmãos.

Portugal jazia sob o jugo castelhano. Não devia ser agradável a vida na pátria, vendo-se a tôda a hora os inimigos seculares passeando seu orgulho aos olhos de cavaleiros que os valiam ou sobrepassavam.
Havia lá longe, largos campos de luta, onde as espadas portuguesas pudessem vingar-se em bárbaros das vanglórias dos castelhanos. Aquêle fidalgo de poucos teres, arribado ao Ganges, no verão do ano de 1600, pensou em ir mais além do que era costume das hostes da conquista. Ela já estava feita: tratava-se, agora, de colher os resultados dos esforços anteriores.


Existiam, porém, terras de muita fama, de que falavam histórias, corridas de bôca em bôca, com o sabor de lendas. Tudo quanto se conhecia de fabuloso, desde as pedrarias rutilantes, que os rajás prodigalizavam, até ás preciosas cargas de produtos exóticos alucinavam as imaginações dos chatins que viajavam, correndo riscos pelas riquezas e dos capitães em busca de triunfos e também de opulência.

Chegado ao porto de Sirião, o cavaleiro português antevia a glória e o lucro. Pensou em edificar uma feitoria naquele local, e, para isso teve de solicitar licença do Rei de Arracão. Já estava naquelas paragens, um europeu, para demais nascido em Lisboa, de pais franceses, e que se chamava  Felipe de Brito Nicote. Foi ele o intermediário para a concessão. Como por milagre os poucos portugueses que acompanharam salvador Ribeiro de Sousa construíram rapidamente a feitoria que era, ao mesmo tempo, fortaleza.


Entrou em aborrecimentos o monarca de Arracão, pressentiu possível hostilidade do cavaleiro e voltou com a palavra atrás. Não queria fortes nas suas terras: desejava muito longe delas os estrangeiros e ameaçou-os de extermínio se não destruíssem imediatamente aquele monstro de madeira e pedra que fazia larga sombra ao seu reino.
A-pesar de não contar com muitos elementos de combate, o gentil-homem de Entre o Douro e Minho não lhe sofreu o ânimo aguardar o ataque do Rei bárbaro. Foi ao seu encontro demonstrando que não o temia. Dispunha de três barcos e artilhou-os; tinha consigo pouco mais de cinquenta portugueses e mostrou-lhes a glorificação do seu nome e da pátria. Encontrou peitos leais e rijos como habituados por corações leoninos e forrados de aço.

A frota imponente do soberano de Aracão subia o rio de Pegú em som de guerra, tripulada pelos melhores guerreiros e que desdenhavam dos pobres baixeis do inimigo. Em breve, destroçados e cheios de pasmo, julgando ter-se batido com as fúrias dos infernos, os peguanos mal tinham voz para contar o que de susto os tolhia.
Grandes foram os despojos colhidos na aventurosa batalha. Arranjou-se com que aumentar a defesa do forte; não faltaria viveres nem pólvora; tampouco riquezas. Os vencidos tinham-se encarregado de as fornecer e, mais ainda, de aumentar o ânimo dos portugueses. Se com três barcos destroçavam uma armada, aquela fortaleza seria inexpugnável em suas mãos!

Já vinham as grandes mesnadas do Banha Lão para acometer quem os desonrara; formigavam os soldados bem apetrechados, à maneira indígena, e seus gritos de guerra ressoavam terrivelmente. Pareciam mais fortes de língua do que de braço.
Salvador Ribeiro de Sousa, fazendo uma sortida, quando eles o julgavam cercado, rompe as fileiras peguanas, estilhaçou as defesas, calcou cadáveres, pôs fogo á tenda de campanha e, apanhado o  Banha Láu, matou-o e mostrou sua cabeça decepada aos soldados abatidos. Os portugueses tinham desprezo por tanto gentio aniquilado. Poderiam vir mais, muitos mais, desfazer-se contra a fortaleza todo o reino que, eles lá estavam para o conter. Não tardou nova investida comandada por Banha Dalá, genro do assassinado. Desta vez não foi fácil a vitória; tornou-se mais apertado o cerco e quando da nova sortida, o cavaleiro português retirou a custo, retalhada a sua face por um golpe qua a marcaria desde a orelha esquerda até à bôca.


Apareceram no rio, embora a distância, brancas velas que pareciam anunciar socorros de europeus. Não passavam de barcos de traficantes que iam em busca de negócios pingues. Serviram para amedrontar o inimigo, com a ardência que Salvador Ribeiro de Sousa lhes comunicou, na batalha travada, as tropas do Dalá sofreram derrota que lhes enfraqueceu o ardor. Retiraram; e, naturalmente, como os derrotados tinham por costume e lei abater os generais, e até os reis, vencidos, ficou vago o trono. O Rei do Pegú fôra assassinado. Prestou-se alto preito ao vencedor, cuja fama alastrava pela Indo-China. Os peguanos elegeram-no seu Rei e uma vistosa embaixada lhe foi oferecer a corôa em grandes galas.

Seria ele o Massinga, o soberano. Sorriu-lhe o desfecho da aventura. Imaginava talvez que seria um bom Rei naquelas terras onde chegou, ao acaso de uma arribada. Deixou-se aclamar, folgou dignamente nos festejos, nobilitou os seus cavaleiros, amigos e aderentes e preparou-se para fundar uma dinastia.
Muitos anos depois Voltaire diria que «o primeiro Rei do Mundo foi um soldado feliz». Salvador Ribeiro de Sousa ganhou batalhas e no seu sangue derramado colhera uma corôa: a do Pegú.
Mandou um embaixador a Aires de Saldanha, vice-rei da Índia e aguardou a sua sanção a tantas vitórias.


Andava, porém alguém a tecer uma teia negra: o Nicote. Tantas coisas dissera e de tal maneira influíra no espírito do vice-rei, que ele o nomeou capitão general da conquista feita pelo grande guerreiro, que ficaria subalterno do intrigante.



Na carta que Aires de Saldanha lhe escrevera lia-se: «A Salvador Ribeiro de Sousa, Capitão da Fortaleza de Sirião, na ausência de Felipe de Brito Nicote». Os usurpadores sempre medraram. Quando aquele chegou, o nobre cavaleiro arremeçou-lhe a coroa com os insultos e embarcou na nau que o conduziu ao reino, triste e desolado sentindo decerto que mais ganham os habilidosos e lisonjeiros do que os altivos e esforçados.


Chegou ao reino, onde acabaria com sua Comenda de Cristo, por único galardão e a lembrança de mil ingratidões.

Fonte: Revista Ver e Crer nº 2 de Junho 1945
Texto: Rocha Martins
Fotos da Net

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© Carlos Coelho

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