A
Caixa negra de Magritte
O pintor surrealista que
transfigurava objectos quotidianos, tem uma nova casa. Um museu com o seu nome,
em Bruxelas, com alguns quadros que nunca reconheceríamos como “magrittianos”.
A casa de um homem é como a sua alma: diversa
A metáfora arquitectónica
assenta como uma luva a René. O Museu Magritte, inaugurado em Junho de 2006, é
um grande edifício de linhas clássicas e janelas quadradas, dispostas em
fileiras obedientes, que, no interior, se transfigura radicalmente em caixa
negra. Como um cara e coroa a três dimensões. Um L’Empire des Lumières em escala rebentada.
Recordam-se deste quadro?
Mostra a paisagem serena de uma rua, com uma casa semioculta no arvoredo, um
céu de dia claro, pintado em cima, em baixo as cores de uma noite iluminada,
por um candeeiro público. Um enigma pictório que levanta a pergunta «é isto
possível?» aos espectadores. A realidade do mundo é, afinal, a aceitação do
mistério, patente em muitos trabalhos do pintor.
L’Empire des Lumières
L’Empire des Lumières está
declinado em duas versões, uma de 1954, outra de 1961, na exposição patente no
Museu: um mundo dividido em cinco andares, onde se abriga a maior colecção de pinturas de René
François Ghislain Magritte, o belga nascido na cidade de Lessines, a 21 de
Novembro de 1898. Surrealista discreto, capaz de grandes rasgos.
Esse é o verdadeiro truque de
prestidigitação, não a fachada renovada do antigo hotel Altenloh, na Place
Royale. Nem as imagens mais conhecidas do artista que defendia que a realidade
não era algo em que se pudesse confiar. Magritte desenhou objectos de contornos
realistas em cenários oníricos, desarrumados em paradoxos ou contradições.
Ele
é o artista que pintou um célebre
cachimbo com a legenda Ceci N’est Pas une Pipe («Isto não é um cachimbo»). Não
era um cachimbo, porque não se podia fumar com ele, linguagem provocatória para
recordar que a representação
de um objecto nunca é o próprio objecto.
La Durée Poignarde
Dele são também os quadros em
que um comboio fumegante sai de uma vulgar chaminé (La Durée Poignarde)
desenhada a partir da que se encontrava na sala de estar da sua casa.
Black Magic, 1945
Ou
aqueles em que o corpo nu de uma mulher se funde num céu de nuvens brancas
(Black Magic, 1945). Ou ainda as imagens em que homens de chapéu de coco e
sobretudo descem dos céus ou se apresentam de rosto ausente ou tapado por uma
maçã. Cite-se o pintor belga para ajustar os binóculos que permitem entender
este universo: «Ver é um acto.» Ainda que o próprio René, enquanto estudante de
artes, tinha ido visitar o Museu Ufizzi, em Florença, lá permanecendo apenas
meia hora entre obras-primas e explicando que era bom, mas que «os postais
também funcionavam».
Visitações
É de outra ordem o jogo de
ilusão provocado pela visita ao excelente Museu Magritte. Não sai nem de uma
cartola de mágico nem de um qualquer chapéu de coco. Revela-se na surpresa de
encontrar coisas novas num universo que se pensava já decifrado, repetido e
esgotado em muitos postais. Há lugar para a ampla divulgação, por exemplo, da
sua obra gráfica, quando trabalhou com o irmão antes de o sucesso chegar,
cartazes publicitários ou ilustrações para partituras de música, de
surpreendente eficácia. Ou para uma selecção de retratos dedicados a patronos e amigos, mulheres loiras bizarramente
sorridentes, mecenas que lembram sábios gregos. Há até a encomenda da companhia
aérea Sabena, um óleo que mostra uma pomba a sobrevoar uma pista de aterragem,
em L’Oiseaux de Ciel (1966).
L’Oiseaux de Ciel (1966
No espaço, pontuado por
fotografias e citações nas paredes do próprio Magritte, o artista é-nos dado num permanente jogo de revelações e
ocultações. Em recantos inesperados, há manuscritos e filmes de época mostrando
as brincadeiras domésticas com os amigos e a mulher, Georgette – fiel a todas
as horas, de quem o museu mostra retratos da jovem lindíssima que era. Por ela,
doente em Bruxelas num período difícil em que a guerra devastava a Europa,
Magritte virá do Sul de França onde se refugiara, a primeira parte da viagem
feita de bicicleta.
Georgette
Com medo e remorso. Há , aqui, quadros que contam essa
história: arbustos de aves feridas e mochos vigilantes, como os povos mal
tratados; ou a leveza do grande pássaro de nuvens a sobrevoar um ninho de Le Retour (1940).
Le Retour (1940
Há que andar entre andares
organizados cronologicamente, e entre as esquinas desta caixa negra para ver
estas obras, muitas delas que não se associaram à sua produção fortemente
inspirada no quotidiano – nem que seja no dos sonhos deste rapazinho de família
pobre, que aos 12 anos descobriria o corpo da mãe, fazedora de chapéus, que se
suicidara. Sobe-se pelo elevador, cujos andares se vão revelando partes de um
corpo: primeiro piso, uns pés. Depois, joelhos, um sexo feminino, uns seios,
até chegar a um rosto de mulher, última
paragem, o topo do seu mundo. É esse o lugar onde decorrerão as exposições
temporárias do espólio vasto: aqui está a produção integral das obras de
Magritte, desde os anos académicos até ao último trabalho que deixou
incompleto. O pintor seria primeiro influenciado pelo construtivismo até ter uma epifania, em 1923,
ao conhecer o trabalho de Georges de Chirico – talvez o primeiro pintor a abrir
caminho para o território dos sonhos. É fácil de ver esse impacto no quadro
L’Homme du Large (1927), uma silhueta sem rosto.
L’Homme du Large 1927
Influenciado pelo cinema e
pela literatura de Poe, Stevenson e Fantomas, passa pelo chamado Período Negro.
Mas Magritte descobriu-se Magritte depois, com o manifesto surrealista
proclamado em 1924 por André Breton. E nós descobrimos outro Magritte, ainda
depois da ruptura com o escritor francês.
Experiências
Magritte fará a sua própria
interpretação do pensamento sem travões morais do surrealismo, mesmo estando
próximo do movimento: por exemplo, convidava o grupo para baptizar os seus
quadros.
La page Blanche
La page Blanche foi alterado por causa deles: a lua crescente passou a
ser uma lua cheia pintada sobre os ramos das árvores, coisa impossível. A
ruptura, brutal com o surrealismo, foi provocada também por aquilo a que alguns
chamam o Período Renoir de Magritte: quadros próximos do universo
impressionista, de cores vivas e traços arrastado de pincel, sóis que giram
como os girassóis de Van Gogh, mulheres arco-íris que descansam na relva,
árvores narigudas e fantasistas como fábulas infantis. A raiva causada pelo
repúdio originou o que é, no museu, uma parede de grande impacto: convulsão de
caricaturas e borrões de tinta em cores ácidas mas sem alegria, alinhada em
cerca de 40 quadros, feita por Magritte em menos de 15 dias, e a que se chamou
o Período Vache. A inspiração foi buscá-la a uma subversão dos comics, na altura uma produção
bem-comportada. Magritte olha para
artistas cáusticos, expressionistas antes de tempo. No fim da parede, há
um quadro com outro tom: La Part du Feu
(1948), o que se tem de abandonar para atingir algo de maior.
La Part du Feu 1948
Uma mulher
estende um prato a um homem deitado numa cama com um candelabro aos pés, alusão
a uma última refeição. É-nos dito que talvez Magritte queira representar o
funeral do surrealismo que ele tanto amou.
René Magritte defendia que as
suas pinturas eram concebidas «como so sinais físicos da liberdade de
pensamento».
Le Domaine d’Arnheim 1962
E é em nome dessa liberdade, que no fim da caixa negra, atordoados
por tantos símbolos e imagens oníricas, esmagados por esse quadro imenso da
montanha em forma de águia de Le Domaine
d’Arnheim (1962) e confrontados com a palavra «rêve» («sonho») numa edificação
de pedra em L’art de La Conversation(1950), é-nos lembrado que a interpretação
que verdadeiramente interessa, e lhes interessava, é a de que olha. A nossa.
L’art de La Conversation 1950
Fonte: Revista Visão
Texto: Silvia Souto Cunha
Fotos : Revista Visão / Net
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