A morte tragicamente violenta de Catarina Eufémia,
assassinada a tiros de metralhadora pela GNR fez despertar quase de imediato, o
mito na sua pessoa, como figura ímpar da verdadeira contestação ao regime
político autoritário do Estado Novo, personificado por Salazar.
Papoila vermelha cedo arrancada do chão
No dia 19 de Maio, passam 61 anos, sobre a morte de
Catarina Efigénia Sabino Eufémia (1928-1954), assassinada a tiros de
metralhadora pelo tenente das forças da GNR, no Monte do Olival- Aldeia de
Baleizão (distante 12 km da sede do conselho Beja), à frente duma concentração
de trabalhadoras rurais nas searas de trigo e estava em tempo de ceifa, que
reclamava um simples aumento dos magros salários. Se ela fosse viva teria feito
em 13 de Fevereiro, 80 anos.
A sua morte tragicamente violenta (na boca do povo,
possivelmente grávida) e com outro filho ainda de meses ao colo, fez despertar
quase de imediato, o mito da sua pessoa, como figura ímpar da verdadeira
contestação ao regime político autoritário do Estado Novo, personificado por
Salazar.
Catarina Eufémia, símbolo da mulher alentejana
Esta mulher simples, de hábitos moderados, natural
de Baleizão, casada, ceifeira de profissão, pobre e analfabeta, filha de José
Diogo Baleizão e de Maria Eufémia, começa a trabalhar ainda cedo no campo, mas
vai passar para a História no imaginário popular, como ícone e mártir da
resistência e luta (representante da gente simples e humilde do orgulhoso povo
alentejano) a todas as formas de opressão e violência gratuita, logo bem
aproveitada, como bandeira e slogan político, sujeita ao interesse e à
estratégia dos partidos que rapidamente tentaram descobrir, na sua pessoa, uma
qualquer atitude de proselitismo militante.
Para o fim trágico desta jovem mãe de três filhos,
“de estatura mediana, de cor branco marmórea, de cabelos pretos, olhos
castanhos, de sistema muscular pouco desenvolvido”, inevitavelmente logo
estaria traçado desde o início, o seu destino. Ingenuamente, terá pensado que
com o seu gesto abnegado iria obter algum favor perante toda a iníqua carga
policial. Este singular acto pacífico de audácia, exemplo da forte determinação
feminina perante toda e qualquer adversidade, vai servir de tema e modelo
narrativo perfeito, à figura dos contadores de histórias (intimamente ligada
como viandante infatigável, ao entretinimento cultural e ao incentivo da
leitura), dispostos a calcorrear as muitas aldeias e vilas dispersas por esse
país fora.
A sua vida de vã glória, terá sido tão anónima e omissa
como a de tantos outros portugueses, se não tivesse ocorrido, esta morte
prematura, difícil de entender, mas que por força das circunstâncias, está
simbolizada na corajosa e heróica oposição duma simples assalariada rural que
morre a lutar de peito aberto, pelos seus direitos, inconsciente aos perigos
que daí possam advir. Ao opor-se romanticamente à força quase feudal dos
latifundiários- os grandes senhores da terra- sonha na utopia de transformar a
terra de quem trabalha em campos férteis de esperança, contra os tempos de
miséria, as desigualdades e todas as injustiças sociais que o regime vigente
tentava por todos os meios perpetuar.
Sem dúvida que o seu acto, algo involuntário de
heroicidade, carrega em si até hoje, o ónus da oposição histórica (desta terra
larga e bonita de gentes e tradição que mantém vivo o sabor da sua
singularidade com o passar dos séculos), como símbolo incontornável contra
qualquer atitude mais repressiva e iníqua das forças do poder político de
então.
O Alentejo (historicamente terra de latifúndios-
grandes extensões de terra pouco cultivadas e de baixa produtividade) há 50
anos era uma província insulada, estigmatizada política e socialmente básico,
com elevadas taxas de mortalidade infantil e de fracas acessibilidades. Estes eram
tempos difíceis para viver- as famílias eram numerosas, com demasiadas bocas
para sustentar, sujeitas a empregos sazonais que apesar de trabalharem à jorna,
do nascer ao pôr-do-sol, não conseguiam ganhar o suficiente para alimentarem os
filhos, quanto mais dar-lhes a educação básica.
Mas sem dúvida que Catarina ajudou a colocar a terra
de Baleizão no mapa de Portugal, sendo a pessoa daí natural, mais notável. A
freguesia (orago de Nossa Senhora da Graça) tem 141km quadrados de área e tal
como toda a região, apresenta uma tendência gradual para uma certa
desertificação, com a deslocação das populações para as zonas mais urbanas do
litoral e estrangeiro, sendo o número actual de habitantes, 1056 (censo de
2001). Tem como actividade económica, a agricultura e a pecuária, bem
representada na heráldica do seu escudo de armas. Saliente-se a qualidade da
gastronomia típica regional.
Até hoje, muitos foram os nomes conhecidos de poetas
e músicos, a escrever e compor sobre a sua desdita, inspirados pela atitude e o
sentido de coragem desta malograda alentejana, com o desígnio de manter viva na
memória de todos nós, a lenda da sua vida para além da morte, entre os quais:
Sofia de Mello Breyner, Ary dos Santos e Vicente campinas, com o seu célebre
poema Cantar Alentejano, musicado por José Afonso, no álbum Cantigas de Maio,
vindo a público no Natal de 1971.
Cantar Alentejano
Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer
Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
Acalma o furor campino
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti
Aquela andorinha negra
Bate asas p’ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar.
“… Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no
instante em que morreste/E a busca da justiça continua…”
Sofia de Mello Breyner
Fonte: Revista Terra Mãe
Fotos da Net e Revista
Texto: João-Maria Nabais
©
Carlos Coelho