quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Catarina Eufémia

A morte tragicamente violenta de Catarina Eufémia, assassinada a tiros de metralhadora pela GNR fez despertar quase de imediato, o mito na sua pessoa, como figura ímpar da verdadeira contestação ao regime político autoritário do Estado Novo, personificado por Salazar.


Papoila vermelha cedo arrancada do chão


No dia 19 de Maio, passam 61 anos, sobre a morte de Catarina Efigénia Sabino Eufémia (1928-1954), assassinada a tiros de metralhadora pelo tenente das forças da GNR, no Monte do Olival- Aldeia de Baleizão (distante 12 km da sede do conselho Beja), à frente duma concentração de trabalhadoras rurais nas searas de trigo e estava em tempo de ceifa, que reclamava um simples aumento dos magros salários. Se ela fosse viva teria feito em 13 de Fevereiro, 80 anos.
A sua morte tragicamente violenta (na boca do povo, possivelmente grávida) e com outro filho ainda de meses ao colo, fez despertar quase de imediato, o mito da sua pessoa, como figura ímpar da verdadeira contestação ao regime político autoritário do Estado Novo, personificado por Salazar.

Catarina Eufémia, símbolo da mulher alentejana


Esta mulher simples, de hábitos moderados, natural de Baleizão, casada, ceifeira de profissão, pobre e analfabeta, filha de José Diogo Baleizão e de Maria Eufémia, começa a trabalhar ainda cedo no campo, mas vai passar para a História no imaginário popular, como ícone e mártir da resistência e luta (representante da gente simples e humilde do orgulhoso povo alentejano) a todas as formas de opressão e violência gratuita, logo bem aproveitada, como bandeira e slogan político, sujeita ao interesse e à estratégia dos partidos que rapidamente tentaram descobrir, na sua pessoa, uma qualquer atitude de proselitismo militante.
Para o fim trágico desta jovem mãe de três filhos, “de estatura mediana, de cor branco marmórea, de cabelos pretos, olhos castanhos, de sistema muscular pouco desenvolvido”, inevitavelmente logo estaria traçado desde o início, o seu destino. Ingenuamente, terá pensado que com o seu gesto abnegado iria obter algum favor perante toda a iníqua carga policial. Este singular acto pacífico de audácia, exemplo da forte determinação feminina perante toda e qualquer adversidade, vai servir de tema e modelo narrativo perfeito, à figura dos contadores de histórias (intimamente ligada como viandante infatigável, ao entretinimento cultural e ao incentivo da leitura), dispostos a calcorrear as muitas aldeias e vilas dispersas por esse país fora.
A sua vida de vã glória, terá sido tão anónima e omissa como a de tantos outros portugueses, se não tivesse ocorrido, esta morte prematura, difícil de entender, mas que por força das circunstâncias, está simbolizada na corajosa e heróica oposição duma simples assalariada rural que morre a lutar de peito aberto, pelos seus direitos, inconsciente aos perigos que daí possam advir. Ao opor-se romanticamente à força quase feudal dos latifundiários- os grandes senhores da terra- sonha na utopia de transformar a terra de quem trabalha em campos férteis de esperança, contra os tempos de miséria, as desigualdades e todas as injustiças sociais que o regime vigente tentava por todos os meios perpetuar.
Sem dúvida que o seu acto, algo involuntário de heroicidade, carrega em si até hoje, o ónus da oposição histórica (desta terra larga e bonita de gentes e tradição que mantém vivo o sabor da sua singularidade com o passar dos séculos), como símbolo incontornável contra qualquer atitude mais repressiva e iníqua das forças do poder político de então.
O Alentejo (historicamente terra de latifúndios- grandes extensões de terra pouco cultivadas e de baixa produtividade) há 50 anos era uma província insulada, estigmatizada política e socialmente básico, com elevadas taxas de mortalidade infantil e de fracas acessibilidades. Estes eram tempos difíceis para viver- as famílias eram numerosas, com demasiadas bocas para sustentar, sujeitas a empregos sazonais que apesar de trabalharem à jorna, do nascer ao pôr-do-sol, não conseguiam ganhar o suficiente para alimentarem os filhos, quanto mais dar-lhes a educação básica.
Mas sem dúvida que Catarina ajudou a colocar a terra de Baleizão no mapa de Portugal, sendo a pessoa daí natural, mais notável. A freguesia (orago de Nossa Senhora da Graça) tem 141km quadrados de área e tal como toda a região, apresenta uma tendência gradual para uma certa desertificação, com a deslocação das populações para as zonas mais urbanas do litoral e estrangeiro, sendo o número actual de habitantes, 1056 (censo de 2001). Tem como actividade económica, a agricultura e a pecuária, bem representada na heráldica do seu escudo de armas. Saliente-se a qualidade da gastronomia típica regional.
Até hoje, muitos foram os nomes conhecidos de poetas e músicos, a escrever e compor sobre a sua desdita, inspirados pela atitude e o sentido de coragem desta malograda alentejana, com o desígnio de manter viva na memória de todos nós, a lenda da sua vida para além da morte, entre os quais: Sofia de Mello Breyner, Ary dos Santos e Vicente campinas, com o seu célebre poema Cantar Alentejano, musicado por José Afonso, no álbum Cantigas de Maio, vindo a público no Natal de 1971.

Cantar Alentejano

Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campino
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate asas p’ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar.

“… Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste/E a busca da justiça continua…”
Sofia de Mello Breyner


Fonte: Revista Terra Mãe
Fotos da Net e Revista

Texto: João-Maria Nabais
© Carlos Coelho