Pequenas histórias que fazem a
História constroem também a identidade do País – que sem elas pouco mais seria
do que o rectângulo de terreno onde vivemos.
O que é um país?
Um território? A população que
nela habita? Os políticos que o governam? Um Hino? Uma bandeira? Uma
representação desportiva?
Mais do que tudo isto somado,
um país é uma identidade. E esta constrói-se tanto à custa de realidades como
de mitos. Com o importante contributo da Pequena História.
A França não seria a mesma sem
a inacreditável epopeia de Joana d´Darc ou o tragicómico episódio do colar da
Rainha Maria Antonieta. Os Estados Unidos são indissociáveis de figuras como
Daniel Boone, David Crockett ou Buffalo Bill, que devem tanto aos factos como à
ficção. A Inglaterra sem as lendas bretãs em torno do mítico Rei Artur ou sem
as alegres façanhas de Robin Hood não seria a Inglaterra que todos conhecemos.
E Portugal? Tirem-lhe o
semifantástico Viriato, o ambíguo D.
Afonso Henriques, a lenda do milagre das rosas, os Amores de Pedro e Inês, o
impoluto Nuno Álvares Pereira, o galente torneio dos Doze de Inglaterra, a fúria
castigadora da padeira de Aljubarrota, O Infante D. Henriques de olhar perdido
no oceano – e vajam o que fica: para lá das duras realidades, apenas uma
selecção de futebol absorvendo todas as frustrações de um povo que cada vez
menos aprende a identificar-se.
Vamos viajar através de alguns
dos mitos que fazem Portugal.
1
(Monumento a Viriato - Marianno Benlliure)
(Viriato foi o primeiro
português) – Mas combatia em toda a península Ibérica e falava uma língua que
hoje ninguém conseguiria entender.
Toda a gente conhece Viriato –
ou julga conhecê-lo. A cultura geral do português médio descreve-o como um
«pastor dos Montes Hermínios» que, à frente dos Lusitanos, combateu
vitoriosamente os invasores Romanos, preservando a independência portuguesa.
Montes Hermínios, aprendia-se na escola, era o nome dado em tempos remotos à
Serra da Estrela. Imaginamos os patriotas lusitanos, semiocultos nas vertentes,
lançando pedregulhos sobre as legiões que desfilavam pelos vales. Entre dois
combatentes, Viriato e a sua gente recolhiam-se à Cava que tem o seu nome, em
Viseu. De acordo com a ideia feita, terá sido esta a primeira guerra portuguesa
pela independência.
Na verdade, Viriato, que nada
tinha de pastor, era um poderoso chefe do povo dos Lusitanos que viveu e
combateu no Sul da Península Ibérica, do Alentejo à Estremadura espanhola e á
Andaluzia. Entre os anos 147 e 140 antes de Cristo infligiu de facto algumas
derrotas aos Romanos, que acabaram por levar a melhor depois de o terem feito
assassinar à traição.
Provenientes da Europa Central,
os Lusitanos eram um dos muitos povos que então habitavam a Península,
estabelecidos numa área que se estendia por ambos os lados da actual fronteira
luso-espanhola. Já vencedores, os Romanos deram o nome de Lusitânia a uma
província do seu império que se estendia pela moderna Espanha adentro, com a
capital em Mérida. Mas no século XVI começou a dizer-se e a escrever-se que os
portugueses descendiam dos Lusitanos. N’Os Lusíadas, Camões afirma que a
Lusitânia foi fundada por Luso, filho de Baco (o deus grego-romano do vinho),
do qual todos nós seríamos tetranetos. Tal fantasia foi totalmente descartada
por Alexandre Herculano em meados do século XIX, mas isso não
impediu que o Estado Novo
retomasse, para efeitos de propaganda patrioteira, a ideia de que os
portugueses descendem dos Lusitanos. Na verdade, somos uma mistura de múltiplos
povos, onde talvez entre a componente lusitana, mas em menor medida do que a
fenícia, a romana, a germânica, a árabe, a berbere, a judaica, a europeia do
tempo das Cruzadas, a africana da época esclavagista, a francesa do período
napoleónico ou até (basta olharmos em volta) a brasileira, a ucraniana ou a
africana dos nossos dias. Devemos muito mais aos Romanos – que nos organizaram
e de quem herdámos a língua, que bebiam vinho e comiam pão de trigo – do que
aos Lusitanos, que tinham costumes estranhos e falavam um idioma perdido e que
agora nos seria totalmente ininteligível.
O Viriato histórico, esse, é
tanto «português» como «espanhol» visto que actuou de ambos os lados de uma
raia que no seu tempo não existia. E quanto á Cava de Viriato, nada tem a ver
com o caudilho Lusitano, embora uma pequena estátua sua ali tenha sido erguida
pelo Estado Novo em 1940. Trata-se de uma fortificação da época muçulmana,
embora com vestígios romanos atestando a sua utilização já em épocas
anteriores. Só no século XVI é que começou a ser associada a Viriato – que
provavelmente nunca pôs os pés na bonita cidade beirã, nem na agreste Serra da
Estrela.
2
(D. Afonso Henriques)
(D. Afonso Henriques batia na
mãe…) – O que fez foi, no entanto, derrotar os partidários de D. Teresa.
Arquivado o «Caso Viriato», e
avançando uns bons 1200 anos na máquina do tempo, aparece-nos como primeiro português
D. Afonso Henriques. Para trás, no Portugal de hoje e na Península Ibérica em
geral, tinham ficado os seis séculos de domínio romano, as invasões dos povos
germânicos (dos Bárbaros como se dizia), o reino dos Visigodos que abrangeu
quase todo o moderno Portugal, o dos Suevos que englobou o Minho e o Douro e a
invasão muçulmana do ano 711, que originou muitos séculos de permanência dos
«mouros» por cá. A designação «mouros» não é correcta, pois para além de
naturais da Mauritânia muitos outros seguidores de Maomé, incluindo árabes, se
estabeleceram na Península. Mas foi a que ficou.
A memória popular, o mais longe que vai é ao tempo destes
«mouros» considerando o mais recuado que se pode imaginar; daí a Casa Mourisca
do romance de Júlio Dinis que de «moura» tinha apenas a característica de ser
antiga. Logo no século VIII, estes mouros começaram a ser combatidos pelos
nobres cristãos do Norte, muitos deles de origem germânica e mais ligados aos
costumes europeus do que aos orientais ou norte-africanos.
Nasceram
assim novos reinos à custa de território conquistado aos mouros. Um desses
reinos foi o de Leão, depois unido ao de Castela. Portugal era um condado
pertencente a esse reino, derivando o nome Portus e Cale (Porto e Gaia), as
importantes povoações da foz do Douro que justificavam a sua autonomia. Para o
governar o Rei de Leão nomeou o Conde Henrique, ou Henri, um nobre francês da
Borgonha que viera para a Península a fim de combater os «infiéis», a quem
ofereceu a mão da sua filha bastarda, Teresa, ou Taraja.
Da
união nasceu, Afonso, filho de Henrique (Henriques, portanto), que após a morte
do pai entraria em ruptura com a mãe por defender um ponto de vista diferente
do dela quanto ao futuro do condado: enquanto Teresa era adepta da união com a
Galiza, o jovem Afonso tornou-se o chefe-de-fila dos barões de Entre Douro e
Minho, que sonhavam com uma maior autonomia. Era inevitável um choque entre as
duas facções, e este teve lugar no dia 24 de Junho de 1128 no campo de S.
Mamede, em Guimarães; há quem pense que não se tratou de uma batalha, mas de um
mero torneio, o que não impede que o confronto entre mãe e filho tenha existido
– e daí o mito de que este «batia» naquela.
Afonso
Henriques passou depois a intitular-se rei e alargou os seus domínios à custa
de territórios tomados aos mouros do Sul e aos leoneses do Leste. Este novo
estado, independente de Leão e Castela, é o Portugal em que vivemos. Ele foi o
seu inventor.
Mas
nunca será de mais lembrar que Portugal, como entidade física, já existia antes
do seu tempo. Quer dizer existiam muitas das actuais cidades, os campos, as
vias de comunicação, as pontes construídas pelos Romanos, uma população formada
pelo cruzamento de diversas etnias e a língua que hoje continuamos a falar
(embora talvez só com grande dificuldade conseguíssemos conversar com um
«português» do século VIII ou IX …).
3
(Batalha de Ourique)
(…e derrotou cinco reis mouros
em Ourique) – Não se
sabe ao certo, porém, se essa batalha existiu mesmo.
São muitas as crenças
associadas ao primeiro Rei português. Outra delas é a de que, à frente de uma
pequena hoste, ele derrotou um poderoso exército comandado por cinco reis
mouros numa grande batalha que teve lugar em Ourique, no dia 25 de Julho de
1139. Reza a lenda que, antes do combate, o fundador do Estado Português teve
uma visão de Jesus Cristo crucificado acompanhado de uma corte de anjos, que
lhe garantiu a vitória. Inebriado com o êxito das suas armas e com a aparição
sobrenatural, Afonso Henriques ter-se-á autoproclamado ali mesmo Rex Portugallensis, «Rei dos portugueses»,
título que passou a utilizar no seu selo a partir de 1140 – ainda que a
confirmação pelo Papa, e o inerente reconhecimento do Estado Português, date
apenas de 1179. Mas, para lá do caracter lendário da aparição, é de pôr em
dúvida a própria existência da batalha tal como a tradição e algumas crónicas
medievais no-la contam.
Com efeito, é altamente
improvável que em 1139, Afonso Henriques e os seus se encontrassem tão longe do
território «português», no Baixo Alentejo, em pleno coração dos domínios
sarracenos. Falou-se da possibilidade de a Ourique da batalha não ser a vila
alentejana, mas sim Vila Chã de Ourique, no Ribatejo, mas ai a improbabilidade
é a de os «cinco reis mouros» (um dos quais poderia ser o emir de Badajoz) ali
se encontrarem, o mesmo sucede com a hipótese de Campo de Ourique, próximo de
Leiria. Na imaginação popular entra ainda a possibilidade do Campo de Ourique
lisboeta, quando a verdade é ser o nome do bairro uma evocação da semilendária
batalha. A própria data em que esta se terá travado também é pouco crível, por
ser demasiado artificiosa: trata-se do dia de Santiago, um santo que tem a
alcunha de Matamouros.
Quanto à introdução do elemento
divino – a aparição de Cristo e dos anjos – no contexto de uma batalha já de si
controversa, data apenas do século XIV, da altura das grandes guerras como
Castela (de que já falaremos), e foi utilizada como argumento político para
justificar a independência portuguesa.
Mas foi tal a importância para
Portugal desta misteriosa batalha de Ourique que os cinco pontos brancos (ou
besantes) que figuram em cada uma dos escudetes (ou quinas) da bandeira são
normalmente interpretados como simbolizando as cinco chagas de Cristo
crucificado – chagas essas que D. Afonso Henriques terá «visto» antes do
combate. De acordo com outra interpretação, os besantes representam as moedas
com que Judas vendeu Jesus, levando-o à crucificação. Também existe uma
explicação segundo o qual os escudetes representam os tais cinco reis mouros
derrotados em Ourique. Ourique sempre…
4
(Pedro I e de Inês de Castro)
(Inês de Castro foi a única
paixão de D. Pedro) – Sem falar da atracção pelo escudeiro Afonso Madeira
Os amores do rei Pedro I e de
Inês de Castro são um dos mitos fundadores da identidade nacional. Expulsos
definitivamente os mouros, o País entrara numa era de paz e de prosperidade.
Pedro ainda era príncipe e
reinava o seu pai, Afonso IV, quando, em 1339, casou com a nobre castelhano - aragonesa Constança Manuel,
destinada a ser a futura Rainha de Portugal.
O problema foi que no séquito
desta vinha uma belíssima dama, bastarda de um nobre galego, chamada Inês de
Castro, por cujos encantos o infante português se deixou seduzir, como o
arrebatado romance fosse vindo à luz do dia. Constança convidou Inês para
madrinha do primeiro filho que teve de Pedro, o que, à luz dos costumes da
época, tornava incestuosas quaisquer relações de caracter amoroso entre os dois
protagonistas desta história. A morte da criança com uma semana de idade veio,
porém, a fazer incidir as maiores desconfianças sobre os amantes. Constança não
tardaria a morrer também (quando dava à luz o futuro rei D. Fernando), deixando
o ainda príncipe Pedro e a bela Inês livres para viverem a sua ligação, da qual
haveriam de nascer quatro filhos.
Ora, não tardou que toda a
gente começasse a murmurar, tanto mais que se dava o caso de os irmãos da
beldade serem grandes senhores de Castela, o que poderia pôr em causa a
legitimidade sucessória de Fernando.
O rei Afonso IV, que já em vida
de Constança ordenara o Exílio da galega, decidiu então mandar assassiná-la.
Segundo outra versão, ordenou antes que fosse julgada e condenada à morte. Vem
a dar no mesmo: Inês foi degolada em 1355, enquanto Pedro andava à caça, o que
o deixou preso de uma fúria incontrolável. Coadunava-se com o seu perfil; o
príncipe era epiléptico e muito gago. Morto o pai, e já rei, mandou arrancar o
coração aos carrascos da amada, cujo cadáver – conta-se – fez desenterrar e
coroou rainha de Portugal. Mas o tétrico episódio da «Rainha Morta», muito
presente no imaginário popular e glosado por várias literaturas europeias, não
tem grande credibilidade, devendo tratar-se de uma efabulação de finais do
século XVI, posterior ao aparecimento das Trovas à Morte de Inês de Castro de
Garcia de Resende, à inclusão do episódio da bela Inês n’Os Lusíadas e à
representação da tragédia de António Ferreira A Castro.
O estranho caso da «mísera e
mesquinha que depois de morta foi rainha (no dizer de Camões) não é, porém, o
único episódio de Petite Histoire relacionado com os amores funestos de D.
Pedro, que a História cognomina ora de justiceiro ora de Cru (ou Cruel). Conta-nos
Fernão Lopes na sua crónica deste reinado que o arrebatado soberano teve uma
assolapada paixão… pelo escudeiro Afonso Madeira, ao qual «amava mais do que se
deve aqui dizer». Como este tivesse um caso com uma tal Catarina Tosse, mulher
do corregedor Lourenço Gonçalves, o rei, furioso, «mandou-lhe cortar aqueles
membros que os homens em maior apreço têm, de modo que não ficou carne até aos
ossos que tudo não fosse cortado». O pobre Afonso, ainda segundo Lopes, foi
tratado, «curou-se, engrossou nas pernas e no corpo e viveu alguns anos
engelhado de rosto e sem barba e morreu depois da sua natural morte».
Paradoxos afectivos de um rei
cruel e semi-louco que o povo mesmo assim recorda ainda vagamente como O
Justiceiro.
5
(A padeira de Aljubarrota)
(A padeira de Aljubarrota
derrotou os espanhóis) – Mas «apenas» matou sete que estavam escondidos dentro
de um forno.
O pequeno Fernando, filho de
Pedro I e de Constança Manuel, cresceu e tornou-se rei. Era, sempre segundo
Fernão Lopes, «mancebo valente, ledo e namorado amador de mulheres e achegador
a elas». Fazendo jus a esta fama, enamorou-se de uma mulher casada e muito
bela, Leonor Teles, que conseguiu desposar e tornar rainha depois de ter obtido
a anulação do seu anterior matrimónio. Mas o povo não gostava da Aleivosa, como
lhe chamavam. Do enlace desta com o
Formoso (assim ficou na História cognominado D. Fernando) nasceu uma única
filha, Beatriz, que casou com o rei Juan I de Castela. Quando D. Fernando
morreu, o rei castelhano achou-se com direito à coroa portuguesa e decidiu
reivindica-la. Segundo as leis da época, tinha razão, e a nobreza portuguesa de
um modo geral pôs-se toda a seu lado. O povo, sobretudo a população de Lisboa,
é que não esteve pelos ajustes: revoltou-se sob o comando de D. João, mestre da
Ordem de Avis (um filho bastardo do nosso velho conhecido Pedro I), matou o
amante galego de Leonor Teles e elegeu o mestre Regedor e Defensor do Reino,
antes de o fazer coroar Rei, como D. João I.
Juan de Castela invadiu então
Portugal com um grande exército de, 30 mil homens, incluindo toda a nobreza, a
cuja marcha se opôs uma pequena hoste de 6 mil portugueses comandada por Nuno Álvares
Pereira, nomeado Condestável (generalíssimo) pelo novo Rei. Estes números
fornecidos por Fernão Lopes, não devem ser rigorosos, mas a desproporção de
forças era decerto flagrante. A batalha feriu-se em Aljubarrota, ao entardecer
do dia 14 de Agosto de 1385. Surpreendentemente, os portugueses venceram,
levando aos castelhanos a uma debandada desorganizada.
Conta a lenda que sete desses
castelhanos á beira de um ataque de nervos se esconderam no forno de uma
padeira chamada Brites de Almeida que, autêntica mulher de armas, saíra para
ajudar na batalha. Ao regressar a casa, Brites deparou com os indesejados
hospedes e matou-os um a um com a sua pá de padeira.
Correm muitas histórias em
torno da figura de Brites de Almeida. Diz-se que era algarvia, muito feia,
forte como um touro e que vivera muitas aventuras, incluindo a morte de um
pretendente à espadeirada e a captura por piratas argelinos.
Mas o que subsiste na cultura
popular é a sua actuação em Aljubarrota. toda a gente ouviu falar da «padeira»
e a maioria dos portugueses pensa vagamente que foi ela quem derrotou os
«espanhóis» (nesse tempo eram apenas castelhanos) na mais decisiva de todas as
batalhas pela independência nacional.
Claro que se é preciso
encontrar uma estratégia da vitória, ele é D. Nuno Álvares Pereira, também um
mito em si mesmo, já que congrega as componentes guerreiras e religiosas.
Canonizado muito recentemente como S. Nuno de Santa Maria, já antes era chamado
em Portugal «Santo Condestável».
Foi tão rude o golpe sofrido
pelos castelhanos em Aljubarrota que o país vizinho de Portugal tardou a
recompor-se. Assinadas as pazes entre os dois estados, Portugal definitivamente
separado do tronco «espanhol» e geograficamente isolado da restante Europa,
voltou-se para o mar – dando inicio a uma «viagem» de que só regressaria
passados mais de cinco séculos.
6
(O Infante D. Henrique fundou uma escola náutica em sagres)
(O Infante D. Henrique fundou
uma escola náutica em sagres) – Só que tal escola nunca existiu.
O Infante D. Henrique, um dos
filhos de D. João I e da inglesa Philippa of Lancaster (a nossa D. Filipa de
Lencastre) é uma das figuras portuguesas com mais projecção
mundial. Equivalente a ele, só Vasco da Gama, pioneiro de uma nova era de
trocas planetárias enquanto descobridor do caminho marítimo para a India, e
Fernão de Magalhâes, autor da primeira viagem à volta do Mundo. Não falando é
claro, de Eusébio, Figo e Cristiano Ronaldo, mas isso são grandezas efémeras
num mundo globalmente formatado…
É inegável o papel decisivo
desempenhado por este Henrique, o Navegador, como é conhecido lá fora (embora
pessoalmente nunca tenha navegado para lá de Ceuta) no arranque da expansão
europeia para outros continentes. Foi por sua iniciativa i sob o seu impulso
que, na primeira metade do século XV, navegadores portugueses começaram a
explorar a costa africana e a aventurar-se pelo Atlântico. Grande parte dos
gastos eram cobertos pelos cofres da Ordem de Cristo (sucessora da dos
Templários), do que o Infante – como nós, simplesmente, costumamos designá-lo –
era dirigente. E diz-se que para formar comandantes e pilotos, fundou uma
escola náutica em Sagres, para cujo corpo docente convidou peritos em
Astronomia, Cartografia e Geografia provenientes de diversos países. Na realidade,
tal escola nunca existiu.
Terá sido o grande Oliveira
Martins que, embalado pelo som das palavras que tão bem sabia alinhar no papel,
idealizou, na sua oitocentista História de Portugal, um Infante erudito rodeado
de sábios e mergulhado na leitura de enormes cartapácios. Em complemento, telas
românticas e azulejos patrióticos mostram-nos aquela figura de vestes negras e
largo chapeirão bolonhês sentado nas rochas da ponta de Sagres, junto da sua
escola, olhando o mar infinito e meditando. Historiadores posteriores
demonstraram, porém, que não foi bem assim, e que se o Infante promoveu as
explorações marítimas que o celebrizaram foi mais à custa de empirismo do que
de ciência certa. Outra ideia a desfazer é a do local de partida das caravelas,
que era Lagos, e não Sagres. Onde não existem condições para a atracagem.
E se há quem defenda que o
Infante D. Pedro, irmão de D. Henrique, teve papel igualmente importante na
organização de expedições marítimas, a matéria permanece controversa. Como
controversa é a identificação visual do Infante D. Henrique, que afinal pode
não ser a figura do chapéu de abas largas que tão familiar se nos tornou. Esta,
baseada na representação de um rosto constante do manuscrito original da
Crónica da Guiné, de Zurara, pouco ou nada tem que ver com a escultura jacente
do seu túmulo, na Batalha.
7
(Pedro Álvares Cabral)
(Pedro Álvares Cabral descobriu
o Brasil em 1500) – mas o Brasil já tinha sido descoberto antes.
O nome de Pedro Álvares de
Cabral está indelevelmente ligado ao Brasil. Considerado durante séculos o seu
«descobridor», teve em anos mais recentes esse estatuto alterado para qualquer
coisa como «comandante da esquadra que pela primeira vez aportou ao Brasil». A
ditadura do politicamente correcto obrigou a essa nuance: na verdade, como pôde um território ser «descoberto» se já
era habitado desde épocas imemoriais pelos povos de remota origem asiática a
que normalmente chamamos «índios»?
O mito a que aqui nos referimos
não é porém este. Trata-se antes da primazia da descoberta europeia do Brasil (e,
postas as coisas nestes termos, a palavra «descoberta» já pode bem passar).
Morto o Infante D. Henrique, em
1460, a procura de novas terras pelos portugueses prosseguiu. É certo que
durante cerca de 20 anos se verificou algum abrandamento, uma vez que o Rei
Afonso V estava mais interessado em conquistas militares no Norte de África do
que na exploração de costas tropicais, mas a subida ao trono de D. João II, o Príncipe perfeito, revelou-se benéfica
para as expedições ao desconhecido. Sob o seu impulso, Diogo Cão subiu o rio
zaire à procura de uma passagem para o Índico, que Bartolomeu Dias viria a
encontrar ao dobrar o Cabo da Boa Esperança. Aberta a rota para a Índia das
especiarias, coube a Vasco da Gama comandar a esquadra inaugural de uma das
mais rendosas rotas comerciais marítimas da História. O comando da segunda
esquadra com destino à Índia foi confiado a Pedro Álvares Cabral. E eis que,
por um erro de navegação difícil de admitir, a maior frota constituída pelos
portugueses até então (mais de mil homens embarcados em dez naus, duas
caravelas e uma naveta de mantimentos) se aproxima da costa da América do Sul
e, no dia 22 de Abril de 1500, «descobre» o Brasil.
Na verdade, é quase certo que
não foi este o primeiro contacto dos portugueses com a maior e mais rica das
suas futuras colónias. Ao mesmo tempo que procuravam no Sul da África uma
passagem para a Índia, os navegadores de D. João II e D. Manuel I aventurava-se
sigilosamente nas ondas do Atlântico, a oeste, à procura de um continente
desconhecido que por aí constava que existia. O futuro brasil terá sido
alcançado em 1492 por João Coelho e mais tarde, em 1498, por Duarte Pacheco
Perira. O segredo destas viagens, conhecidas por «arcanos», devia-se ao facto
de D. João II estar a negociar com os espanhóis, sob arbitragem papal, o
traçado do meridiano que dividia o mundo em duas esferas de influência: o
conhecimento exacto da localização do «Novo Mundo» permitir-lhe-ia negociar com
conhecimento de causa. Assinado em 1494, em Tordesilhas, o tratado que repartia
entre os dois estados ibéricos as terras a descobrir, D. Manuel I (D. João II
morrera em 1495) pôde assim «descobrir» oficialmente, para a Coroa Portuguesa,
uma terra que de lendária nada tinha.
Mas nada disto impede que «Seu
Cabral», eterno descobridor do Brasil, continue a morar em letras de
sambas-enredo e a manter um quarto alugado com vista para as nossas memórias de
infância.
8
(D. Sebastião)
(D. Sebastião regressará numa
manhã de nevoeiro) – Esta crença teve, contudo, objectivos políticos no tempo
dos Filipes.
Se existe um mito fundamental
da nacionalidade portuguesa, esse mito é o do Sebastianismo. Independentemente
da classe social e do nível de educação, quase toda a gente vive à espera de
alguém que «venha endireitar isto». Se, para os mais esclarecidos, esse alguém
deverá ser legitimado por eleições, nem por isso é menos ardente a fé
generalizada no aparecimento de um salvador. Os ditadores Sidónio Pais, em
1917, e Salazar, em 1928, encarnaram bem a figura do Desejador, o primeiro
governou apenas um ano, o segundo 40 – mas ambos deixaram marcas.
O «legítimo» Desejado, fundador
inconsciente do mito, foi S. Sebastião. Paradoxalmente, tratou-se talvez do
pior Rei da História portuguesa, se é que tais coisas podem ser medidas com
fiabilidade. Vejamos como pôde isto acontecer.
Sentado no trono aos 14 anos de
idade, em 1568, o neto de D. João III (o pai morrera com 16 anos, de diabetes
juvenil) pensava em tudo menos governar o País. Sem fazer grande caso do que os
conselheiros lhe diziam, misógino e desprezando totalmente a descendência
(nunca lhe passou pela cabeça ter um filho), sonhava com caçadas e guerras
contra os «infiéis». Um dia embarcou em paço de arcos para Tânger sem dar
palavra a ninguém e ali quis convencer a guarnição daquela praça-forte ocupada
pelos portugueses a reconquistar Larache e arzila, abandonadas pelo avô.
Conseguiu regressar com vida mas ia naufragando numa tempestade que o atirou
para a Madeira. Sempre a sonhar com um império cristão no Norte de África,
resolveu em 1578 intervir numa disputa entre dois senhores da guerra
marroquinos, aliando-se a um deles. Arrastou para aventura toda a nobreza
portuguesa, à frente de um exército de 25 mil homens. Partiram como se fossem
para uma festa, e a maioria perdeu a vida em Alcácer-Quibir, numa batalha
absurda – sem objectivo, sem táctica, sem liderança. Oliveira Martins escreveu
que no areal onde se travara a batalha se acharam 10 mil guitarras, mas isso
também deve ser um mito.
Feitos prisioneiros, muitos
nobres foram regressando á medida que iam sendo pagos os resgates exigidos
pelos marroquinos. Quem não se lembra do «Romeiro» da peça de Almeida Garrett Frei Luís de Sousa, que não era outro
senão D. João de Portugal, um nobre desaparecido em Alcácer-Quibir? Chegavam
também muitos cadáveres de nobres. Como o corpo do rei não fosse encontrado,
nasceu a crença no seu regresso com vida, mais tarde ou mais cedo. O desejo
popular de que isso sucedesse devia-se ao facto de D. Sebastião não ter
descendentes, o que significava que a coroa deveria passar para Felipe II de
Espanha, filho de Isabel de Portugal e neto de D. Manuel I. Isso veio
efectivamente a acontecer, tendo Portugal estado ligado à Espanha entre 1580 e
1640.
Durante esses 60 anos os
patriotas não pararam de sonhar com o regresso do Desejado, também chamado Encoberto
e Adormecido. O seu aparecimento
deveria verificar-se numa manhã de nevoeiro, à proa de um navio, para resgatar
Portugal e fundar um novo império. Mas durante os primeiros tempos de
«dominação filipina» (como costuma dizer-se) esta aspiração popular não era
compartilhada pela maioria da nobreza, que esteve aliada aos reis espanhóis, só
vindo a mudar de opinião muito mais tarde, já na década de 1630. Um grupo de
fidalgos lideraria então a Restauração, um movimento largamente apoiado pelo
povo.
9
(A Maria da Fonte)
(A Maria da Fonte foi uma
grande revolucionária) – na verdade foi uma grande reaccionária.
Braço no ar, foice ao ombro,
por vezes pistola na mão, busto generoso moldado por um corpete justo, saia
rodada e pés descalços – eis o retrato-robô de Maria da Fonte, uma mulher que
todos conhecem mas que ninguém sabe ao certo quem foi. Fica a ideia de que se
tratou de uma grande revolucionária, e as estátuas espalhadas pelo país fazem
que, na nossa imaginação, outra entidade abstracta com corpo e rosto femininos.
Mas está tudo errado.
Maria da Fonte foi o nome de um
movimento colectivo de cariz marcadamente conservador, e que portanto nada teve
de revolucionário.
Passado o turbilhão das
Invasões Francesas (1807-1811) e ganha pelos liberais a guerra civil de
1824-1834 contra os absolutistas. Portugal andava ainda á procura da
«normalidade democrática». Tudo começou no dia 19 de Março de 1846, quando o
pároco de uma freguesia da Póvoa de Lanhoso, no Minho, não conseguiu fazer
cumprir a nova lei segundo a qual, em nome da higiene público e para evitar os
focos de epidemias, os enterros passavam a fazer-se em cemitérios e não no
interior das igrejas. A oposição ao decreto foi protagonizada por um grupo de
mulheres armadas de foices e gadanhas. O rastilho alargou por toda a vasta
região minhota e transmontana, e da contestação à «Lei da Saúde» rapidamente se
passou para uma insurreição generalizada contra o governo de Costa Cabral, da
direita moderada. Essa oposição juntou no mesmo saco os esquerdistas radicais
conhecidos por setembristas e os reaccionários miguelistas saudosos da
monarquia absoluta.
Falhada a tentativa de
esmagamento da sublevação, a rainha D. maria II viu-se obrigada a demitir o
governo e a mandar para exílio (em Espanha) Costa Cabral e o seu irmão José
Cabral, ministro da Justiça – os célebres «Cabrais» que permanecem no
imaginário popular. As rivalidades entre Saldanha, palmela e o Duque da
Terceira levaram depois á guerra civil de 1846-47 que ficaria conhecida por
Patuleia e que só terminou com a intervenção inglesa e espanhola que reconduziu
Costa Cabral ao poder. Regressada a instabilidade, só em 1851 a Regeneração
inauguraria o longo período «normalidade democrática» da Monarquia
Constitucional, que duraria até ao golpe de 28 de maio de 1926.
Porque se chamos a este
movimento contestatário de 1846 Revolta da Maria da Fonte? Porque reza a
moderna lenda que uma das mais assanhadas líderes da luta contra os enterros
nos cemitérios foi uma tal maria, residente na freguesia de Fonte Arcada, perto
de Penafiel. Necessariamente conservadora, como todas as que a acompanharam de
foice ao ombro e braço erguido.
Mas são assim os mitos
duradouros. Mas fortes, coloridos e sedutores do que a apagada e vil realidade.
Fonte: Revista Visão
Texto: Luís Almeida Martins
Fotos da net
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