“Repetimos e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentirmos confortáveis com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo, mesmo que o tudo seja infinitamente pouco, acarreta.”
Já se sabe que viver em sociedade é uma canseira. Que estamos sempre a começar de novo, a fazer os mesmos gestos, a repetir, como se tivesse graça, ou fosse engraçado, uns tantos chavões, umas tantas frases batidas, as queixas do costume e, já agora, porque não, a esperança idiota a que nos agarramos para sobreviver, os pequenos e grandes afectos que vamos sentindo e querendo sentir, no reconhecimento da dificuldade da estranheza e também do privilégio da existência.
Devemos quase todos ter vocação para chatos. De certeza. Deve
ser daí que vem esta curiosa tendência para nos agarrarmos com unhas e dentes a
umas tantas pessoas. Para demarcar um território que alindamos, em que nos
refugiamos e a que chamamos nosso.
Para conseguir, entrar ano e sair ano, estamos horas em
filas várias, esperando, esperando sempre. Para achar que é mesmo assim toda a
gama de injustiças e bizarrias com que nos cruzamos, ou que vemos de longe
entre a preguiça, a tentativa de indiferença e a mágoa fininha e entranhada.
Repetimos automaticamente tantos gestos que já nem é
inquietante ligar o telefone duas vezes seguidas para a mesma pessoa e
perguntar a mesma coisa ou lavar uma e outra vez os dentes em caso de dúvida. Repetimos
e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentir confortáveis
com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo,
seja infinitamente pouco, acarreta.
De vez em quando, olhamos para trás e reparamos que
passou muito tempo e estamos exactamente no mesmo sítio, com o mesmo discurso,
as mesmas dificuldades, pessoas, medos e anseios. Ou, então, invade-nos a
sensação de déjà-vu, descolamos de nós e penetramos num registo sensorial em
que todas as impressões e imagens se repetem ou se rememoram.
Sempre as mesmas. Às vezes, só às vezes, afligimo-nos
seriamente com aquilo a que chamamos rotina, com a estranha compulsão que nos
conduz inexoravelmente a transformar novidades em hábitos, surpresas em
expectativas, pessoas bonitas em homens invisíveis, momentos felizes em
direitos adquiridos.
Às vezes, muito às vezes, damos conta que o tempo de que
dispomos é limitado, que os seres que amamos não são eternos na disponibilidade
e na presença, que os nossos pretensos adquiridos de desgastam e degradam como,
alias, é suposto.
Por excepção, em momentos únicos e breves, damos conta
que a chuva tem mesmo de cair no molhado e aproveitamos uma velha metáfora para
significar outro dia .
Fonte: Revista Caras /Psicologia
Texto: Por Isabel Leal / Professora de Psicologia Clínica
no ISPA
Fotos: Net
© Carlos Coelho