segunda-feira, 14 de março de 2022

Chover no molhado

“Repetimos e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentirmos confortáveis com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo, mesmo que o tudo seja infinitamente pouco, acarreta.”

Já se sabe que viver em sociedade é uma canseira. Que estamos sempre a começar de novo, a fazer os mesmos gestos, a repetir, como se tivesse graça, ou fosse engraçado, uns tantos chavões, umas tantas frases batidas, as queixas do costume e, já agora, porque não, a esperança idiota a que nos agarramos para sobreviver, os pequenos e grandes afectos que vamos sentindo e querendo sentir, no reconhecimento da dificuldade da estranheza e também do privilégio da existência.

Devemos quase todos ter vocação para chatos. De certeza. Deve ser daí que vem esta curiosa tendência para nos agarrarmos com unhas e dentes a umas tantas pessoas. Para demarcar um território que alindamos, em que nos refugiamos e a que chamamos nosso.

Para conseguir, entrar ano e sair ano, estamos horas em filas várias, esperando, esperando sempre. Para achar que é mesmo assim toda a gama de injustiças e bizarrias com que nos cruzamos, ou que vemos de longe entre a preguiça, a tentativa de indiferença e a mágoa fininha e entranhada.

Repetimos automaticamente tantos gestos que já nem é inquietante ligar o telefone duas vezes seguidas para a mesma pessoa e perguntar a mesma coisa ou lavar uma e outra vez os dentes em caso de dúvida. Repetimos e habituamo-nos ao gesto, à ideia, à palavra, acabando por nos sentir confortáveis com a previsibilidade do que nos espera, com a segurança que o controlar tudo, seja infinitamente pouco, acarreta.

De vez em quando, olhamos para trás e reparamos que passou muito tempo e estamos exactamente no mesmo sítio, com o mesmo discurso, as mesmas dificuldades, pessoas, medos e anseios. Ou, então, invade-nos a sensação de déjà-vu, descolamos de nós e penetramos num registo sensorial em que todas as impressões e imagens se repetem ou se rememoram.

Sempre as mesmas. Às vezes, só às vezes, afligimo-nos seriamente com aquilo a que chamamos rotina, com a estranha compulsão que nos conduz inexoravelmente a transformar novidades em hábitos, surpresas em expectativas, pessoas bonitas em homens invisíveis, momentos felizes em direitos adquiridos.

Às vezes, muito às vezes, damos conta que o tempo de que dispomos é limitado, que os seres que amamos não são eternos na disponibilidade e na presença, que os nossos pretensos adquiridos de desgastam e degradam como, alias, é suposto.

Por excepção, em momentos únicos e breves, damos conta que a chuva tem mesmo de cair no molhado e aproveitamos uma velha metáfora para significar outro dia .

Fonte: Revista Caras /Psicologia

Texto: Por Isabel Leal / Professora de Psicologia Clínica no ISPA

Fotos: Net

© Carlos Coelho