História da Arte- Mobiliario das elites na ultima metade do século XVIII
Proprietários de várias terras e palácios, os nobres portugueses eram parcos no que à mobília diz respeito. Para passar uma só noite em casa do marquês de Pombal a sua irmã teve de transportar as camas de toda a família. Pouco dados às artes, confinavam-se ao brilho das pratarias e disfarçavam a falta de quadros nas paredes com damascos e brocados que engalanavam tudo o que era mesa ou cadeira. Muitas e curiosas revelações de uma tese, exaustiva na descrição do mobiliário das elites na última metade do século XVIII e pioneira na clarificação de uma área da História ainda sujeita à especulação. Eis a casa dos nossos egrégios, mas afinal tão «franciscanos» avós.
Há 250 anos, a casa de
qualquer pessoa com um ofício já especializado «não reuniria mais que uns oito
trastes. Uma bancada, uns bancos e talvez uma prateleira para suster três ou
quatro pratos. Nem pensar em camas ou cadeiras». Quem o diz é Carlos Franco,
mestre de História das Artes Decorativas e autor da tese O Mobiliário das
Elites de Lisboa na Segunda Metade do Século XVIII, publicada pela Livros
Horizonte.
Se como imaginávamos, a casa
do cidadão comum espelhava uma existência espartana, a nobreza, que de espartana
não tinha muito, estava ainda longe de sonhar com as condições de conforto que
nos trouxeram os séculos posteriores. Desfazendo o imaginário de ficção
idealizado pelo cinema e a literatura e clarificando a própria história que no
capítulo das artes decorativas ainda tem zonas de sombra apenas baseadas na
transmissão oral, eis que numa incursão nos arquivos da Torre do Tombo vem
desfazer alguns dos nossos mitos de grandeza e deitar por terra monarcas e
nobres. Literalmente. Porque camas era coisa que não sobejava.
A investigação centra-se em
Lisboa, capital do reino e principal espaço físico da Corte onde resida o maior
número de famílias nobres e debruça-se sobre os cinquenta anos pós-terramoto. É
um tempo de corte com o passado e de ressurreição da cidade, onde tudo se vai
jogar de novo. Ponto final no fausto e ostentação do anterior reinado de D.
João V, época de contenção imposta pela estratégia do Marquês de Pombal, mas
também período em que vingam as ideias iluministas, transformando por completo
o espaço da casa.
Até aqui as cadeiras estavam
circunscritas às mulheres, que não conviviam sequer nos mesmos espaços da casa.
O quarto era o centro de todas as atenções, espaço de sociabilidade por
excelência onde se investiam as mais avultadas somas em dinheiro e onde se
dormia, comia e recebiam as visitas que exigissem tratamento condigno.
Conceitos de intimidade ou privacidade, só mesmo a partir da segunda metade do
século XVIII, com a passagem do palco da acção para a «sala», uma invenção das
«luzes» e factor de transformação profunda no comportamento familiar e social.
(Rei
D José I)
Apesar de o seu palácio não
ter sofrido, grandes danos com o terramoto de 1755, o rei D. José I,
aterrorizado, passa a viver num «palácio de pano» construído por várias tendas
montadas no jardim. Para não se afastar da Corte, Sebastião José de Carvalho e
Melo, marquês de Pombal, escolhe também como residência um «palacete
abarracado» na Calçada da Ajuda. «Lançada a moda das barracas, umas mais
sumptuosas, outras mais modestas, em seis meses havia um total de nove mil
barracas», escreve Carlos Franco. «As barracas é expressão sua?», queremos
confirmar. «Não, não, daí vem aliás o nome de várias ruas e travessas do “abarracamento”
que existem em Lisboa», esclarece, em conversa telefónica.
(A família real espanhola, por volta de 1743. À esquerda, de pé, o príncipe herdeiro, o futuro Fernando VI de Espanha, e sentada, de azul, a sua mulher, D. Bárbara de Portugal.)
Em Janeiro, a Corte partia
para caçar no Palácio de Salvaterra de Magos, em Fevereiro para a Tapada de
Mafra, depois para herdades de Alcácer do Sal, mais dois meses de estada em
Vila viçosa, passagem pela lagoa de Albufeira e, no Verão, Palácio de Queluz. À
noite entretinha-se assistindo aos espectáculos de música onde era vulgar a
presença de companhias de ópera italianas e de dia ocupava-se com a montaria e
a altanaria, contando para o desporto com falcões trazidos da Dinamarca.
Não faltavam passatempos e
ingredientes, o que faltava era mobília. Porque apesar das deslocações
constantes as casas não tinham um único móvel que lhes pertencesse
exclusivamente. Fazendo mais que justiça ao vulvar nome de «móveis»,
transportava-se todo o recheio de uma casa de mansão em mansão. Ornamentos,
utilidades, panos, tapeçarias e alcatifas – Danificados e acusando o desgaste
provocado pelas sucessivas mudanças- eram sujeitos a uma vida na estrada. Como
refere o historiador, até o magnífico Palácio de Mafra («colosso de pedra onde
trabalharam diariamente mais de vinte mil homens») continuava sem mobiliário
próprio. Nenhum dos Palácios onde a corte vivia regularmente tinha direito a
mobiliário permanente, mas as propriedades, essas, não faltavam.
Elucidativo é um trecho das Memórias
do Marquês de Fronteira e de Alorna, citadas por Carlos Franco: «Minha avó
tinha a mania das viagens e nunca se sabia onde estava. (…) Morava em Benfica e
tinha várias casas de campo em Carnide, palma, Telheiras, para onde se mudava,
com a sua numerosa família, muitas vezes no ano.» E, para tão intensa
actividade nómada, o que não faltava á nobreza eram verdadeiras companhias de
transportes e mudanças, na pele dos seus próprios criados. «Não há terra como
Lisboa onde os criados de ambos os sexos sejam tantos (…) Pululam nas casas dos
fidalgos e dos grandes e nalgumas delas davam para povoar uma aldeia», escreve
um visitante estrangeiro citado pelo historiador.
Cena num Quarto de Dormir.
Autor: Desconhecido. Técnica: Óleo sobre tela. Data: ca. 1690. Dimensões: 47,5
x 72 cm. Local de origem: França.
A pintura mostra o
interior de um quarto de dormir francês, no final do século XVII. A cama de
dossel, com cortinas de veludo encarnado com franjas douradas e, as costas
altas das cadeiras, são o tipo de mobiliário de origem francesa, muito usado na Europa, possivelmente também em Portugal, tal como as tapeçarias penduradas nas paredes. - Victoria and Albert
Museum
No registo das compras feitas pela Casa Real e investigadas por Carlos Franco, é notório que o rei prefere adquirir porcelanas e aparatosas peças de prataria em detrimento de pinturas e outras obras de arte. Mas o brilho das pratas, de milhares de cristais e das molduras douradas não chega para disfarçar o facto de a realeza ser pobre em mobiliário. Os observadores estrangeiros, consensuais, denunciam que mesmo em dias de gala só há cadeiras para a família real e que os outros «senhores portugueses, para descansarem, apenas se podem ajoelhar». Criticam ainda o mau gosto nacional, referindo que, para além de não existirem quaisquer móveis ricos ou modernos, a situação é agravada pelo costume de «vestirem saias às comodas e ás mesas» não poupando peça alguma a tecidos e «atavios de todas as cores», lisos ou bordados.
Retrato de Casal num Interior. Autor: Eglon van der Neer (holandês). Técnica: óleo sobre madeira. Data: 1665 - 1667. Dimensões: 73,9 x 67,6 cm.
Um casal da burguesia rico, já comodamente sentado no seu quarto, onde se vê couro estampado cobrindo a
parede, tapete persa trabalhado com várias cores, sobre a mesa, e por cima da lereira um quadro com a imagem
de Venús. Museum of fine Arts, Boston.
No Diário de Portugal e Espanha do milionário inglês William Beckford (que permaneceu em Portugal vários anos, mantendo estreitas ligações com a nossa nobreza), Beckford escreve que não é «capaz de atinar com o demónio que tentou os portugueses a inventar tão bolorenta moda». Critica o facto de monarcas e nobres viverem arredados das generalidades das artes, chegando a escrever, em Setembro de 1787, que está «inabalável na decisão de deixar Portugal» para ver-se «são e salvo, longe desta terra de pobreza e ignorância».
O distintivo de classe não
está de facto no conteúdo, mas na aparência exterior da residência. «A
principal preocupação do construtor da casa nobre setecentista é edificar uma
imponente fachada», escreve Carlos Franco. La dentro as paredes estão revestidas
de painéis de azulejos com cenas de montaria ou orientalizantes, o que, mais
uma vez de acordo com os comentários e queixa dos viajantes estrangeiros, torna
as casas frias, facto em muito piorado por só existirem lareiras nas cozinhas.
O grande investimento parece
centrar-se na profusão de tecidos – de tafetá, chita ou damasco -, decorados
com representações sagradas ou profanas e que, possivelmente, acrescentavam a
vantagem de encobrir o desgaste que os móveis iam sofrendo no vaivém contínuo.
Notória era evidentemente a falta de quadros nas paredes. A casa do Marquês de
Marialva, exemplo varias vezes referido no estudo, estava «pobremente
ornamentada com estampas inglesas coloridas e corriqueiros registos de santos e
madonas». E, no entanto, o valor médio de uma «armação de casa» (conjunto de
tecidos que cobriam as paredes) custava cerca de 96$000 réis, enquanto o valor
médio de uma pintura era apenas de 1$300 réis.
Tapeçaria, Julho. Autores:
Jean De La Croix (fabricante) e Charles Le Brun (designer). Local de origem:
Fabricada em Gobelins, Paris. Data: 1670 - 1700. Técnica: Tapeçaria tecida em lã e seda.
Esta tapeçaria pertence a uma série que representa doze das residências reais de Luís XIV, durante os diferentes meses do ano. O rei é representado a caçar, com a sua comitiva, no terreno do seu castelo. - Victoria and Albert Museum.
Ruas da Prata e do Ouro eram
o destino quando o objectivo das compras era o aparato. O restante mobiliário
vendia-se na casa/oficina do próprio artífice, já com direito a anúncio no
jornal: «Quem quiser comprar huma papeleira, ou dous toucadores marchetados à
Francesa, e de bom gosto, com suas guarnições respectivas, falle com Francisco
Lemaitre, Mestre Marceneiro, morador na rua de Santa Gertrudes á Calçada da
Estrella», publica-se na Gazeta de Lisboa, a 15 de Novembro de 1794. Através deste jornal procurava-se também
comprador ou vendedor para todo o tipo de peças. E se existiam lojas e armazéns
que vendiam produtos provenientes do Oriente e do Brasil, a mais importante
forma de transação comercial dos «vários trastes de casa» eram os leilões,
anunciando «adornos da moda e do bom gosto», «preços muito acomodados», «tudo
no último gosto e primor», «móveis de todas as classes e gostos» misturados com
«as boas pinturas d’Authores».
Bufete
Séc.XVIII
O número crescente de
cadeiras é sintoma de desenvolvimento da vida social que passa a centrar-se no
«salão», novo espaço da casa. As ideias iluministas tendem para a sociabilidade
e as classes privilegiadas adoptam os comportamentos da «gente educada», que
goza das «sãs delícias e do suave prazer da companhia» porque «o homem
esclarecido tem prazer em conviver». Como figura principal do salão, os jogos
de cadeiras em torno de um canapé. Carlos Franco frisa, em conversa, que nesta
época se dá a explosão de dois tipos de móveis: a «mesa de jogo», porque o jogo
de cartas se torna o novo vício da realeza, e as «mesinhas de chá», com a
introdução do hábito desta bebida.
Rareia ainda a «mesa de casa
de jantar», função ainda sem espaço definido, aparecendo por isso as «mesas de
abas», versáteis e apropriadas para improvisações.
Nas cadeiras, a nogueira, é
a madeira mais utilizada, mas, graças às nossas artes de disfarçar carências,
encontram-se já muitas peças de mobiliário «em pinho fingindo nogueira». Há
cadeiras de «espaldar abaulado que permitem uma postura menos rígida do corpo
representando a vitória da posição sentada e do sedentarismo», «feito à grega»,
«à inglesa» e «à moderna», muitas com remates de talha dourada, não tantas
possuindo braços.
Tamborete
Séc.XVIII
Nota-se uma preocupação com
a higiene, aparecendo nos inventários «cadeiras de retrete» (com uma bacia de
loiça, ou cobre dentro), «poltronas com bidé», «cadeiras de pentear» e
«cadeiras de banho» (também com bacia incluída).
Entre os móveis de repouso,
o mais sumptuoso é o chamado leito, coberto de tecidos e de brocados. O mais
caro encontrado na pesquisa estava avaliado em 264$000 réis. Era de madeira
pau-santo, «com imperial, colchas, cobertor e enxergão». Com uma soma destas,
referem os documentos, podia comprar-se por exemplo, a «escrava preta por nome
Quitéria Rosa, natural de Cabo Verde, de idade de 58 anos pouco mais ou menos,
a “livraria” do marquês de Niza, quatro painéis pintados por Josefa de Óbidos,
um par de serpentinas de dois lumes em prata, dois colchões de cama grande
cheia de lã, um espadim em prata, um vestido de homem e um vestido de mulher
americano.
Não foram encontrados
quaisquer outros leitos em diferentes divisões das casas para além daquele que
enobrecia a câmara principal. Os restantes quartos albergavam catres, cama mais
modesta, «com pilares não totalmente levantados como os do leito».
Leito do Séc. XVII
Mas a verdade é que as casas
portuguesas as camas não eram ainda um bem de primeira necessidade. Os colchões
e enxergões faziam a vez. «mesmo na casa das elites», escreve Carlos Franco, «o
número de camas era manifestamente baixo tendo em conta o número de
residentes». E note-se que os residentes eram uma multidão. Em casa do marquês
de Fronteira, por exemplo, eram mais de oitenta pessoas entre amos e criados e
na do marquês de marialva haveria «cinquenta criados a postos». Dormiam oito a
dez por divisão, «duas a duas, pretas, brancas ou mulatas, num colchão de lã
com coberta».
É tal a falta de camas que a
irmã do marquês de Pombal, «para dormir uma única noite na quinta do irmão,
transportou a sua cama, a do marido, a da filha e a da sua criada».
William Beckford conta no
seu Diário que depois de um arrastado jantar em casa do marquês de Marialva
viu-se obrigado a pernoitar naquela casa e passou a noite num colchão cheio de
pulgas que não lhe permitiu pregar olho.
Curioso e muito
significativo no que diz respeito á importância dada ao mobiliário é o facto de
nesta residência não se padecer propriamente de um estado depauperado. De
acordo com um testemunho da marquesa de Alorna, igualmente citado por Carlos
Franco, sentavam-se todos os dias à mesa do marquês de marialva dezenas de
convivas e confeccionavam-se diariamente «trezentas rações distribuídas entre a
plebe parasita da capital».
Consola. Autor:
Desconhecido. Local: Portugal. Data: 1720 -1740. Técnica: Talha dourada sobre
madeira de castanho e tampo de mármore policromado.
Decorada com motivos de
cariz vegetalista - festóes e folhas de acanto, que se entrelaçam com volutas e
concheados. - Museu Nacional Machado de
Castro, MatrizNet.
Exposições: "Triomphe du Barroque" - Bruxelas Europália, 1991; "Triunfo do Barroco" - Centro Cultural de Belém, 1992.
Os sinais de grandeza ficavam-se pelos tecidos que vestiam o mobiliário e o maior símbolo de riqueza encontrava-se na exposição de objectos oriundos de outras partes do mundo, testemunho da nossa grandiosidade ultramarina. Uma descrição das Memórias do marquês de Fronteira e Alorna sobre a casa dos condes de Resende dá-nos o retrato: «entrava-se na primeira sala, guarnecida de magníficos panos de arrás e de talhas da Índia, e, depois, para o gabinete onde estavam os Condes e que era dos mais elegantes da época. Os tremós e as bancas estavam cheios de preciosa louça do japão e da Índia e de muitas curiosidades do Brasil, onde o Conde tinha sido Vice-Rei.» E continua dizendo que o visitante «era surpreendido com a beleza da escada, de magnífica e elegante arquitectura, e com o grande número de creados que apareciam com velas acesas em castiçaes de prata». O tom ambiente, pormenoriza o historiador, era o do brilho destes objectos em contraste com os tons mais escuros das madeiras e com os dourados que «a cada dia iam encontrando mais espelhos para os reflectirem e exultarem».
O mobiliário das elites de Lisboa na segunda metade do Século XVIII (Livros Horizonte, 168pp) é um estudo exaustivo das peças que se encontravam nas casas nobres da época, com desenhos demonstrativos. Descreve-nos o seu estado de conservação, o modelo, os materiais, as cores e as proveniências. Contadores, ventos, oratórios, cofres, mesas, leitos, catres, canapés, tamboretes, tremós, cómodas, baús, aparadores, cantoneiras, cabides ou molduras são aqui reinventariados e descritos ao pormenor, numa obra que não foi pensada para encher o olho a ninguém, pelo contrário, é antes precioso instrumento de trabalho para historiadores das artes decorativas e evidentemente, para qualquer antiquário, leiloeiro e comprador que não queira comprar gato por lebre, o que no caso quer dizer, por exemplo, pinho por mogno ou pau-santo. E para acrescentar mais uma peça á compreensão da nossa História.
Fonte: Revista Notícias
Magazine, Mobiliário Paço dos Duques, Blog ComJeitoArte
Texto: Claúdia Moura
Fotos da Revista e da Net