sábado, 12 de agosto de 2023

Billie Holiday


Os Tormentos da Diva do Jazz

Esteve presa, consumiu drogas e álcool, mas o talento deu-lhe o estatuto de estrela. With Billie, o livro escrito por Julia Blackburn, revela os segredos da rainha do jazz.

Por onde andou Billie Holiday? Por incrível que pareça, em Nova Iorque a resposta não é fácil de encontrar.

Aquela que para muitos foi a maior vocalista de jazz e blues de todos os tempos viveu a maior parte da sua vida em Manhattan. Mas, apesar de as suas duas casas – o apartamento da Rua 140 e outro na Rua 87 – ainda permaneceram tal como na primeira metade do século passado, não há qualquer menção ao facto de terem pertencido a “Lady Day”. Parece brincadeira, mas na capital mundial da publicidade não há uma placa, um sinal sequer, um único marco histórico para celebrar a vida quase sempre atribulada de uma das principais atracções desta cidade. Uma vida que terminou cedo, em 1959, aos 44 anos de idade, por conta do uso excessivo de álcool e heroína (indicados delicadamente como “problemas de coração e fígado”).

Foi lançado um livro em 2005 no mercado norte-americano, que conta histórias sobre Billie Holiday. With Billie ´´e mais umdocumento do que uma biografia. A escritora Julia Blackburn mergulhou no famoso baú da investigadora Linda Kuehl, que por sua vez passou duas décadas a entrevistar amigos, familiares, parceiros musicais e fãs de Holiday, mas cometeu suicídio em 1979 – saltando do quarto andar do seu apartamento em Washington – antes de terminar o livro que seria a obra definitiva sobre o atormentado “anjo do harlem”, como era conhecida a cantora.

Em With Billie, Julia Blackburn deixou de lado qualquer aspiração a contar “a” história de Billie Holiday.

De modo generoso, ela traçava um perfil possível da cantora – a narrativa de uma vida partida em muitas. “Enquanto eu ia mexendo nestas entrevistas, ia dando conta de que Billie Holiday era uma pessoa bem diferente da vítima de drogas pesadas e outros vícios infatigavelmente descrita nas capas de discos, revistas e livros”, disse Blackburn numa entrevista.


O material a que ela teve acesso é uma mina de ouro. Kuehl foi de facto uma obcecada por Billie. Passou anos a recolher, diariamente, tudo o que se podia relacionar com o seu ídolo, incluindo registos das passagens da cantora pela cadeia e bilhetes escritos em guardanapos das casas nocturnas em que soltava a voz. Certamente ficaria desapontada ao percorrer alguns destes infernos em busca de um lampejo, uma marca, um retracto de Billie. Também não há qualquer menção à cantora nos clubes de jazz mais populares do Harlem dos anos 30, como os míticos Pod’s e Jerry’s, ainda activos.

Logo que deixou a casa de trabalhos forçados de Welfare Island, onde a sociedade nova-iorquina encarcerava as meninas “de vida fácil”, Billie começou a cantar jazz. Nessa época vivia no número 151 oeste da Rua 140, o seu primeiro endereço em Manhattan. Aí dividiu o espaço com a mãe, a partir de 1929, depois de chegar de Filadélfia, onde nascera.


Na sua autobiografia, Lady Sings The Blues, publicada em 1956, a artista descrevia o seu prédio como um “luxuoso conjunto de apartamentos onde se pagava caro e, ao mesmo tempo, se convivia com um bordel dirigido por uma das mais importantes madames do Harlem”.

Depressa a menina de 14 anos começou a receber clientes. Era a mais nova call girl, que realizava o sonho dos fregueses por sessões de 20 dólares cada.


O último refúgio de Billie em Nova Iorque foi o número 26 da Rua 87, apartamento 1B. Quando aí morava, gravou o seu disco favorito, o assombrado Lady in Satin. Repleto de pérolas musicais, criadas com o auxílio da orquestra de Ray Ellis, o álbum começa com os versos “I’m a fool to love you” (“sou uma tola por te amar”) e termina com “the end of a love affair” (“o fim de um caso de amor”) – e não é por acaso. Quem saía todos os dias de casa para gravar nos Estúdios da Columbia era uma mulher de 43 anos, mas o que se ouve é a voz de uma senhora dos seus 70 e poucos. O resultado é Billie Holiday a traduzir, como nunca, dor, sofrimento e perdas em notas de jazz.

A sua última casa também marca os anos em que Billie sentiu mais acentuadamente os efeitos de uma vida de excessos. A cantora Annie Ross, amiga de Billie, lembra no livro Nillie Holiday, escrito por Stuart Nicholson em 1995, que poucas pessoas frequentavam a casa de Lady Day naqueles tempos. “Quando eu ia visitá-la, ela cozinhava e eu ia escolhendo os discos para tocar na aparelhagem.

Ela estava quase sempre em baixo e as pessoas não costumam gostar de ser vistas, sei lá por que motivo, com quem não está por cima da onda.”

Em With Billie, Blackburn oferece-nos a voz de Alice Vrbsky, a última ajudante da artista, que renega o mito da negra abandonada e refém da heroína nos seus últimos dias de vida. “Em Junho de 1959 ela bebia apenas gim e 7-up e o seu último hábito perigoso era adormecer enquanto fumava um cigarro na cama”, conta. Billie Hollyday morreu um mês depois no quarto 6 no 12º andar do Metropolitan Hospital de Harlem, às três horas da madrugada. A cidade que ouviu os seus gritos, risos e suspiros parece esquecida da sua história, tão intensa quanto atribulada. Há uns anos a Imprensa nunciou que um grupo de fãs estava a reunir dinheiro para erguer uma placa em frente à casa da Rua 87. Até agora, nada aconteceu.


Em With Billie, a escritora Julia Blackburn conta que o episódio mais dramático da cantora aconteceu em 1947, quando foi presa por uso de drogas. Durante um ano e meio, ficou detida no Estabelecimento Correccional de Mulheres, na Virginia.

Nos 11 anos seguintes foi seguida pelo FBI e perdeu a licença para cantar na noite em Nova Iorque. O Trompetista Buck Clayton lembra os desabafos da cantora:

“Eles permitem-me cantar num parque ao ar livre, mas fui banida das casas nocturnas. Estou cansada de viajar. Seria bom se pudesse ficar em Nova Iorque, só por um bocadinho.”

 

Fonte: Revista Sábado

Texto: Eduardo Graça

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