“Há uma espécie de
vergonha em assumir para si mesmo que ‘tendo tudo para ser feliz’, afinal não
se consegue chegar lá. Que há pequenos acontecimentos de outros tempos (…) que
regressam ciclicamente à mente, os sonhos e influenciam o dia-a-dia.”
É ponto assente que os
povos felizes não têm história. Ainda assim, suspeita-se da afirmação, ou pela
descrença num qualquer estado de beatitude relativamente permanente a que se
possa chamar de felicidade, ou pela circunstância de não se lobrigar onde
estejam os tais povos sem história. Por demasiadas razões, provavelmente mais
das pessoas que dos povos e mais individuais que colectivas, parece que a
capacidade e o desejo de provocar acontecimentos, embarcar em ideias que têm
consequências, viver emoções e significar os dias e a vida, chega e sobra para
entrar numa especial corrente de tempo a que depois se chama história.
Mas a ideia da
afirmação percebe-se: são os acontecimentos, a ausência de rupturas bruscas, a
continuidade sem sobressaltos, o fluir dos dias de forma esperada e previsível
que, ao não permitirem pontuações especiais, recordações especiais e
comemorações especiais, anulam um qualquer carácter histórico.
Por qualquer razão,
algumas pessoas dispõem-se a adaptar à sua dimensão esta frase bonita e a
fazerem de conta que não têm história, que tudo o que sentiram e viveram era
exactamente o esperado e adequado e que por isso, pelo facto de não terem
história, são, têm de ser, felizes, ou pelo menos contentinhas. Como não provêm
de famílias disfuncionais, não sofreram maus tratos nem negligências
assinaláveis, nunca tiveram fome ou frio, não foram espancadas nem perseguidas,
não passaram por guerras nem tiveram doenças graves, então aconteceu-lhes o
mesmo que a toda a gente, sem mérito, sem história, sem narrativa possível nem
razões e argumentos para invocar como justificação ou explicação compreensiva
dos seus estados de infelicidade.
Por qualquer razão, há
uma espécie de vergonha em assumir para si mesmo que “tendo tudo para ser feliz”,
afinal não se consegue chegar lá. Que há pequenos acontecimentos de outros
tempos, pequenas sensações do passado, minúsculos dizeres de pessoas que já
desapareceram ou perderam importância, que regressam ciclicamente á mente, aos sonhos,
e influenciam o dia-a-dia, como se tivessem importância.
Parece estranho que
memórias antigas e lembranças, de estatuto e veracidade duvidosos, deixem
lastro e penetrem todas as relações e, sobretudo, na capacidade de desfrutar,
ou não, o que vai acontecendo.
Queira-se ou não, o que
aconteceu e o que se sentiu é, à escala individual, a forma de mensuração do
mundo. Mais acontecimentos, maior espectacularidade, não se traduz em maior
sensibilidade ou emoção. Cada um tem a história que tem, e porque é a sua é,
necessariamente, a de referência e a mais importante. Seguro mesmo é que as
pessoas felizes têm história. E sabem que a têm.
Fonte: Revista Caras
Texto: Isabel Leal /
professora de Psicologia Clinica no ISPA
Foto: net
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