domingo, 16 de outubro de 2016

Saltos Altos



São um símbolo de elegância, um fetiche sexual, uma tortura para os pés. Os saltos altos transformam uma Gata Borralheira numa Cinderela, uma Maria rapaz numa Mata Hari, uma secretária numa executiva. Elevam a estatura, o estatuto e sublinham a autoridade. Desafiam as leis da gravidade, os conselhos médicos e a sensatez das mulheres. São idolatrados por quem quer sentir-se sexy e odiados por quem nunca aprendeu a caminhar sobre eles.
Anita Ekberg pôs a cabeça dos homens a andar à roda quando ergueu um dos seus magníficos «salto agulha» para tomar um «sapato»de champanhe com Marcelo Mastroianni numa das cenas fellinianas mais emblemáticas em La Dolce Vita (1960). Elisabeth Taylor reconquista o marido (Paul Newman) com o sex appeal com que tira um par de sapatos de salto alto em Telhado de Zinco Quente (1958). O balançar de ancas de Marilyn Monroe em  Os Homens Preferem as loiras (1953) conseguido graças a  uns exclusivos sapatos vermelhos que viriam a render 42 mil dólares num leilão da Christie’s só conseguiram rival à altura com Kim Basinger em Nove Semanas e Meia (1986) nuns  inesquecíveis sapatos abertos… de salto.

A culpa é da Rainha


Claro que no século XVI Catarina de Médicis estaria muito longe de imaginar o furor que fariam quatrocentos anos depois os saltos com que resolveu elevar a sua baixa estatura para ir ao encontro do futuro marido, que ficaria para a história como Henrique II de França. Diz-se que foi esta rainha a verdadeira  introdutora dos saltos altos nas cortes europeias – ao que consta, no século XVIII a moda tinha pegado de tal maneira que os exageros na elevação obrigavam as damas a apoiar-se em bengalas, criados ou maridos para conseguirem andar em cima das plataformas que não dispensavam.


Mas os saltos nos sapatos não são, nem foram, um exclusivo feminino. A história dos objectos indica que nos séculos XV / XVI eram um acessório muito utilizado no meio militar, porque permitiam um encaixe perfeito nos estribos dos cavalos e ajudavam a um melhor controlo do galope. E para quem tem de exercer autoridade não há nada como estar  uns centímetros acima dos outros para se fazer respeitar. Nas cortes europeias do Renascimento, os saltos altos permitiam a distinção: acima da plebe e acima da lama dos caminhos.

Toda a vaidade é castigada


Se é lícito supor que os sapatos surgiram para proteger os pés, a verdade é que rapidamente (em termos históricos, claro) se tornaram símbolo da vaidade feminina. E o facto de as mulheres sofrerem estoicamente horas a fio em cima de uns afilados e altos sapatos para garantirem a elegância do seu pé encontra explicações nos arquétipos mais profundos do imaginário europeu. Que o diga a Gata Borralheira, transformada em princesa Cinderela pela herança genética que lhe permitiu enfiar o pé num delicado – e afilado – sapatinho de cristal de salto bem alto e assim ser recompensada pela abnegação com que aguentou anos de maus tractos pelas malvadas irmãs. E o politicamente correcto dos dias de hoje apagou das «histórias de encantar» a moral da história, o verdadeiro fim das duas manas más, que fizeram um pacto com o diabo para conseguirem calçar o sapato de cristal. Quem ainda não conseguiu um exemplar da história anterior à versão açucarada da Disney ficará a saber que a irmã mais velha levou o sapato para o quarto e tentou calça-lo em frente à mãe. Mas o seu pé grande e gordo não entrava de maneira nenhuma. A mãe deu-lhe uma machadinha e disse-lhe para cortar o dedo grande do pé: «quando fores rainha não precisarás de andar a pé.» A fila assim fez, enfiou o pé no sapato, mordeu os lábios para não gritar de dor e foi ter com o príncipe.
E claro, toda a vaidade é castigada e era para isso mesmo que serviam os «contos de fadas» Na triste história da menina dos sapatinhos vermelhos, a protagonista, que tanto desejava uns para poder dançar, acaba por também firmar um pacto com quem não deve e recebe os desejados sapatos. Começa a dançar e nunca mais para - «dançou pelos campos, dançou pelos prados, dançou à chuva, dançou ao sol, de dia e de noite e continuou sempre a dançar». Quando tentou tirar os seus lindos sapatinhos não conseguiu – estavam demasiado apertados. Rasgou as meias, mas nem assim conseguiu. Continuou sempre a dançar, atravessou florestas e bosques, dançou sobre silvas e espinhos que a arranharam até fazer sangue e acabou por aceitar a ajuda de um camponês, que lhe cortou os pés com os sapatinhos vermelhos – e mesmo assim estes continuaram a dançar, com os seus pés lá dentro, e a menina ficou a vê-los desaparecer, sempre a dançar, em direcção á negra floresta.

A marca da diferença


O que torna o pé o centro das atenções e dá ao salto um protagonismo inusitado é que a forma como assenta no chão é que vai ditar a sexualidade do corpo da mulher: quanto mais vertical for o salto, mais o peito se projecta para a frente. Quanto mais reduzida for a superfície de apoio do peso do corpo maior o ondular das ancas ao andar – lei da física de que Marilyn Monroe foi um perfeito exemplo.
Os saltos altos para as mulheres, estão de forma incontornável, associados a «ser sexy». O salto agulha é a marca diferencial de uma longa lista de actrizes tornadas objecto de desejo. E sabe-se que os saltos são muito apreciados por drag queens e actrizes porno, embora nas suas variantes de «plataforma» e sola espessa, e de preferência de verniz. E claro, objecto de culto nas gavetas escondidas de muitos fetichistas. Difícil é esquecer os Tacones Lejanos em que se empoleirou Miguel Bosé em Saltos Altos, de Pedro Almodóvar.
Para as mulheres do final do século XX, os saltos altos – e afiados – também surgem como símbolos da sua capacidade de se imporem perante os homens, sobretudo no mundo do trabalho. Porque as tornam mais altas – dez artificiais e psicológicos centímetros são suficientes para mudar a carreira de uma mulher – e lhes dão mais autoridade. Constatação passada para a tela por Hollywood no filme:  Uma Mulher de Sucesso (1988) em que a «secretária» Melanie Grifith substitui os seus inestimáveis ténis pelos elegantíssimos saltos agulha de Sigourney Weaver, «roubando-lhe» assim não só o lugar de executiva como também o bem sucedido e bonitão candidadato a namorado Harrison Ford.

Mulheres altas, homens pequenos


Mas não há bela sem senão, e esse acréscimo de altura que pode ser um trampolim profissional pode também significar a descida aos infernos numa relação amorosa. O imaginário cultural ocidental admite com dificuldade que num casal a mulher seja mais alta do que o homem. E mais do que imaginário é o homem que se sente mesmo mal com a sua (menor) altura. Não terá sido por acaso a malograda Princesa Diana optou por elegantes sapatos rasos depois do seu casamento com o herdeiro da coroa britânica. E foi ver Nicole Kidman abandonar as sabrinas e regressar aos saltos altos e finos depois de se divorciar de Tom Cruise. Para já não falar das recentes imagens da novíssima primeira-dama francesa, a modelo Carla Bruni (Sarkozy), que até mesmo de elegantíssimas sabrinas ultrapassa o marido nuns bons centímetros tornando a vida dos responsáveis pelo protocolo um autêntico pesadelo.
Mas se os saltos altos e afilados concorrem insdiscutivelmente para o aumento da auto-estima de uma mulher, os médicos garantem que também podem contribuir para lhe arruinar a saúde, a começar pelos pés, coluna, má postura. E há quem defenda que são também responsáveis pelo aparecimento de rugas prematuras, dores de cabeça e acessos de fúria devido ás dores que é preciso suportar quando se passa algumas horas em cima destas verdadeiras obras de arte.
Se há personagem que sacralizou os sapatos de salto alto foi Carrie, interpretada por Sarah Jessica Parker em O Sexo e a Cidade. A sua paixão por sapatos, especialmente os Manolo Blahnik e os Jimmy Choo, vai ao ponto de suplicar a um assaltante que lhe leve tudo o que tem, mas lhe deixe ficar  os «Manolo» que acabara de comprar por um bom preço numa sessão de saldos…

Manual de Utilização


Há regras de ouro para poder usar saltos altos. A primeira é aprender a andar em cima deles para que a candidata a sexy do ano não se transforme na desconjuntada da festa. Cinzia Felicetti, direrectora da edição italiana da revista Cosmopolitan, aconselha, no seu livro Absolutamente Glamourosas!, a que se use o salto agulha com saias justas, pelo joelho (no caso de saias muito curtas ou muito compridas é melhor não exagerar na altura do salto). Também são adequados os clássicos casual como calças de ganga/top de seda, ou com um vestido preto justo, estola de pele (imitação!) e brincos chandelier. Sugere que se reservem os sapatos de veludo ou de seda para a noite. Dourados e prateados, «que alternam nas passerelles de estação para estação», devem guardar-se para o verão: o dourado vai bem com o branco e o prateado com os tons pastel. As chinelas com saltos, que dão pelo afrancesado nomes de mule vão bem com corsários.
A jornalista italiana desaconselha o uso de saltos altos e finos a quem tiver de caminhar ou manter-se de pé por várias horas: «Lágrimas e sangue por um par de sapatos nunca vale a pena.» Mas como terapia para um dia desastroso sugere a frenética busca pelas lojas para encontrar o salto agulha perfeito. E cita George Bernard Shaw: «Se não se consegue adaptar aos saltos altos, procure pelo menos compensar com um chapéu muito elegante».

Fonte: Revista Notícias Magazine
Texto: Sofia Barrocas
Fotos da Net
𺰘¨¨˜°ºðCarlosCoelho𺰘¨¨˜°ºð