1932-2011
A última das estrelas
Bela e perturbadora. Sexual. Apaixonada. Inteligente e sensível.
“Liz” era a última das grandes estrelas da época áurea de Hollywood. Morreu em
23 de Março, em Los Angeles, aos 79 anos. Ficará para a eternidade como um
milagre de luz e sombras. For ever ande ver.
No imaginário de século XX, as estrelas de cinema assumiram, durante
muito tempo, o papel de semideuses, reflexo transposto de uma imagem distante e
ideal dos nossos desejos mais secretos:
Transformámos em símbolos sexuais figuras como Clark Gable, Jean
Harlow, Humphrey Bogart, Marilyn Monroe, James Dean, ou, em tempos de escassez
como os presentes, Sharon Stone, Brad Pitt, Tom Cruise e Julia Roberts,
projectando no grande ecrã fantasmas e desvarios.
Estes ídolos (até no sentido
religioso do termo) cinematográficos cumpriam, na época áurea de Hollywood,
funções hiperbólicas, que nunca mais se repetirão da mesma forma: Greta Garbo
era a Divina, Marlene Dietrich possuía as mais belas pernas do universo, Ava Gardner
era “o mais belo animal do mundo”, o casamento de Rita Hayworth com Ali Khan
revestia-se de modulações de contos de fadas, tal como o de Grace Kelly com
Reinier do Mónaco perpetuava a actualização possível da história da Cinderela
que encontrava o seu príncipe encantado, a fim de viver (in) feliz para sempre.
Elizabeth Taylor, resistente desse esplendor passado, para muitos a
última das estrelas, uma vez que a queda do sistema dos estúdios, a partir de
finais dos anos 50, virou tudo do avesso, ganhou uma particular importância no
universo estelar que os americanos exportaram para o mundo inteiro: primeiro
revelou-se como a menina-prodígio, pura e casta companheira de Lassie e de
cavalos de corrida, bem como de Mickey Rooney, Roddy McDowall ou outros adolescentes
bem (ou mal) comportados, evoluindo depois para ficções mais ou menos
cor-de-rosa, com o seu rosto perfeito de bonequinha e uns deslumbrantes olhos
violeta a decorarem adaptações de romances como Mulherzinhas (Mervyn
LeRoy,1949), ou comédias sentimentais como o Pai da Noiva (Minnelli, 1950),
prolongado pela sequela O Pai é avô (1951).
Na primeira metade dos anos 50, atinge o apogeu da sua incandescente
fotogenia em filmes de aventuras – Ivanhoe (Thorpe, 1952), Na senda dos
Elefantes (Dieterle,1954), - melodramas – Rapsódia (Charles Vidor, 1954), A
última vez que vi Paris (Richard Brooks, 1954) – ou num western épico – Gigante
(George Stevens, 1956), - para, no final da década, adquirir uma beleza
perturbante, progressivamente sexuada – Gata em Telhado de Zinco Quente
(Brooks, 1958), Bruscamente no Verão Passado (Mankiewicz, 1959) ou O Número do
Amor (Daniel Mann, 1960) que lhe trouxe um óscar para a interpretação de uma
prostituta de luxo, muito menos complexa do que
as anteriores heroínas de Tennessee Williams ou mesmo a menina de alta
sociedade presa nas malhas de uma tragédia americana, em Um Lugar ao Sol
(Stevens, 1950).
Cleópatra, o paradigma
E chegamos ao seu papel paradigmático (para o melhor e para o pior,
o ponto de viragem numa carreira recheada de êxitos), o da controversa rainha
do Egipto em Cleópatra (Mankiewicz, 1963), apaixonada por dentro e por fora do
ecrã pelo Marco António de Richard Burton.
Aliás, o tormentoso romance com
Burton vinha culminar uma tumultuosa vida sentimental que os cronistas de
escândalos e as revistas de fãs de há muito registavam: desde imaculada noiva
do herdeiro da fabulosa fortuna dos Hilton, a inconsolável viúva do
megalomaníaco produtor Mike Todd, por amor do qual até se convertera ao
judaísmo, passando por um discreto casamento com o actor britânico Michael
Wilding.
Em 1959. A Taylor afrontava todas as hipócritas ligas de coerência
ao “roubar” Eddie Fisher a uma outra estrela, de perfil romântico e ingénuo, a
Debbie Reynolds de Serenata à Chuva e de tantos outros musicais tecnicoloridos
da MGM. Por via desta traição a uma amiga pessoal, agravada pelos sórdidos
episódios subsequentes com que a imprensa se divertia a denegrir o casal Burton
(o tumultuoso divórcio, seguido de segundo casamento, as olimpíadas bebedeiras,
a paixão de ambos por fabulosos e gordos diamantes), Elizabeth Taylor perdera o
estado de graça de princesinha de Hollywood, criada pelos estúdios a fim de
melhor a promover, e substituía a figurinha grácil e lendária por uma matrona
precocemente envelhecida, gorda e flácida, que predominava nos filmes
engendrados à medida do “infame” par – Hotel Internacional (1963), Adeus
Ilusões (Minnelli, 1965), A Fera Amansada (Zeffirelli, 1967) -,culminando no
inacreditável da sua “decadência”, em que se mostrava uma actriz de inesperados
recursos (“feia”, agressiva, maior que o mito) e recebe o segundo
(merecidíssimo) Óscar.
Inteligente e sensível
Por detrás desta imagem estereotipada de insaciável devoradora de
homens, ficara ocultada a mulher inteligente e sensível, amiga de toda a vida
de Montgomery Clift (desde que por ele se apaixonara em 1950, durante a rodagem
de Um lugar ao Sol), figura torturada de homossexual semiassumido, numa
Hollywood puritana e intolerante. Esta outra Taylor emerge, precisamente,
quando impõe Clift como seu parceiro em Reflexos num Olho Dourado (John Huston,
1967), oferecendo-se o seu cachet milionário à laia de caução do amigo em queda
livre. Clift morre entretanto, substituído por Marlon Brando, mas Taylor não
desiste e cria a fundação Clift, colabora com a Associação Americana para as
Doenças do Coração, bem como a Sociedade Britânica das Crianças Deficientes
Mentais.
Alguns biógrafos destacam esta actividade “caritativa”, enquanto
outros discutem a sua coerência, incluindo a dadiva de um famoso diamante e
doações monetárias a hospitais para criar alas especiais com o nome da estrela,
falando de uma desesperada tentativa de contrabalançar o fim inexorável da sua
carreira fílmica (a fatídica barreira dos cinquenta anos para as actrizes
hollywoodianas) com uma controversa visibilidade filantrópica.
No entanto, quando Rock Hudson, outro amigo de longa data (desde os
tempos de Gigante) assumiu publicamente, perto da morte provocada pela sida que
o assassino silêncio da administração Reagan ignorara, a sua homossexualidade,
Elizabeth Taylor saltou de novo para a linha da frente, emprestando o seu nome
à luta contra a doença e contra o obscurantismo hipócrita que possibilitara a
sua propagação.
Se uma estrela como Rock Hudson, outrora síbolo sexual de uma
masculinidade assertiva, inventada por Hollywood, dera visibilidade a uma
causa, “Liz” Taylor deu a mais valia do seu nome à feroz denúncia então
desencadeada.
Já no final da década de oitenta, entrevistada por Terry Wogan no
seu talk show da televisão britânica, Elizabeth Taylor provoca um silencio
gélido ao recusar manter o seu papel de mulherzinha estupida, mostrando o
enorme anel de diamantes e falando do que o publico voyeurista e o
entrevistador queriam ouvir – bisbilhotices do seu romance com Burton e outras
tantas frivolidades: em vez disso, a estrela solidária e afirmativa,
peremptória, que Hollywood e a Broaddway não teriam nunca existido sem a
contribuição dos muitos artistas homossexuais, atraiçoados por um péssimo
actor, Ronald Reagan, e pela hipocrisia de uma sociedade que ele
instrumentalizara para defender o indefensável. Sempre que se invocavam as
vitimas da sida, lá estava, na ribalta, a atrair as câmaras com o seu nome e a
mostrar como o tão propalado escapismo de Hollywood possui limites evidentes e
desejáveis.
Entretanto a sua carreira cinematográfica chegara, de facto, a um
impasse, uma vez que o relativo fracasso de duas grandes produções realizadas
por Joseph Losey – Boom e Cerimónia secreta (ambos de 1968) – a haviam
condenado a episódicos protagonismos em filmes sem grande representatividade:
X,Y e Z (Brian Hutton, 1971, ao lado de Michael Caine), Por que Morre o Nosso
amor (Larry Peerce, 1973, parecendo mais velha do que Henry Fonda, apesar de
ser 27 anos mais nova- nascera em Londres, filha de pais ingleses, em 1932, sob
o signo de Peixes) ou o inominável O Outono da Vida (1974), realizado em Itália
por Patroni Griffi.
Para a eternidade
O gigantesco fiasco da superprodução americano-soviética O Pássaro
Azul (George Cukor, 1976) fez o resto e nem o prestígio de um elenco de luxo
(além dela, Rock Hudson, Tony Curtis, Kim Novak, Angela Lansbury, ou Geraldine
Chaplin) resgatou o Espelho Quebrado (Guy Hamilton, 1980), mediana adaptação de
Agatha Christie, do triste papel de canto-do-cisne.
Depois disso, quase só
televisão – desde três episódios da eterna e sacrossanta soap opera General
Hospital (1981), até ao regresso a Tennessee Williams em O doce Pássaro da
Juventude (1989), passando pelo papel de Louella Parsons, no venenoso Malícia
no País das Maravilhas, ou pela série Norte e Sul (ambos de 1985) – e uma
desastrosa incursão pelo teatro da Broadway, em The Little Foxes, de Lillian
Hellman. A última vez que a vimos no grande ecrã foi já num papel secundário em
Os Flintstones (1994), muito, muito longe dos esplendores de outrora.
O que ficou deste longo percurso cinematográfico de mais de 50 anos?
Desta vida cheia, iniciada em 1932? Uma beleza deslumbrante, resultante de uma
química inexplicável operada pela luz e pelo olho da camara.
Uma voz quebrada,
frágil, inconfundível, a contrastar com uma força anímica única, que triunfou
sobre tudo: inúmeras doenças graves, entradas e saídas de clinicas de
recuperação de alcoolismo, mudanças de peso e de imagem, incontáveis operações
plásticas, múltiplas mortes anunciadas, tenebrosas campanhas de imprensa para a
arrasar.
Bastariam os close-ups em Um lugar ao Sol, poucos fotogramas da sua
maggie (em gata…), o seu solilóquio final em Bruscamente…, a imponente entrada
em Roma de Cléopatra, ou a Fúria “sanguinária” em Quem Tem Medo de Virgínia
Wolf? Para a instituírem como mito vivo e imperecível, maior do que a natureza,
mais vulnerável do que o seu estatuto de estrela das estrelas. Aliás esta
dimensão não se explica; é um fenómeno que escapa a qualquer racionalização. A
Taylor ficará para a eternidade como um milagre de luz e sombras, de cor e
carne virtual, captando em celulóide e projectado no ecrã, bela e perturbante
for ever and ever.
Toda a Taylor, em dez filmes
O Regresso – Lassie Come Home (1943)
Infantil, linda de morrer e com um olhar doce e ingénuo nos
ultrapassáveis olhos cor de violeta. Com uma ternura magoada, a voz de Taylor
já possui os requebros que a tornarão famosa, dando a entender a força
magnética de estrela, que possuía como poucos. Tudo isto, acrescido de uma
realização simples e eficaz e de uma fotografia brilhante em glorioso
tecnicolor, faz do filme um clássico do género.
O Pai da Noiva (1950)
A Taylor juvenil, noiva da América, numa comédia familiar sob a
chancela de Minnelli, como filha casadoira de Spencer Tracy e Joan Bennett.
Estraordinário o modo como exibe a sua graça virginal, no momento do seu
primeiro casamento com o herdeiro da fortuna Hilton, como se a noiva fílmica
possuísse vagos ecos autobiográficos, a iniciar o mito. Inesquecível o modo
como caminha, vestida de noiva, como se deslizasse no espaço, ligeira como uma
pluma, a mostrar os seus dotes pouco explorados de comediante.
Um Lugar ao Sol (1951)
A maioridade como actriz, frágil e vulnerável, no primeiro encontro
com Montgomery Clift, o seu parceiro ideal, belo como ela e infinitamente mais
ambíguo. Famoso e espantoso beijo entre ambos, em close up, um dos mais bonitos
da história do cinema: por muito mal que se continue a dizer de George Stevens,
Um Lugar ao Sol é uma obra prima de encenação e Taylor incendeia o ecrã com a
sua gloriosa fotogenia e com o saber estar em cada plano.
A Última vez que vi Paris (1954)
Talvez a melhor de todas as adaptações de Scott Fitzgerald,
constitui a charneira decisiva na representação do mito: Taylor passa incólume
pela grelha dos flashbacks e oscila entre a fragilidade subtil de uma imagem e
a construção forte de uma personagem que domina a acção, mesmo quando ausente.
Perdida à chuva ou em efígie no desenho da parede, a actriz suplanta
a estrela, torna-se o símbolo de uma geração perdida com a fúria de um vulcão,
a caminho das heroínas de Tennessee Williams.
O Gigante (1956)
Filme desequilibrado, mas oferece a Taylor a oportunidade de
contracenar com Rock Hudson e James Dean e mostrar versatilidade, pelo modo
como envelhece no ecrã, aos 24 anos, com uma credibilidade que raros lhe
atribuíram: é o centro nevrálgico da ficção, nervosa, humanizada, maior do que
a natureza, mas genialmente ciente do seu papel de mater famílias.
Goste-se ou não do filme, o mito também passa por aqui, por esta
figura senhoril que se confronta com os grandes espaços desérticos de um Texas
de celulóide.
Gata em Telhado de Zinco Quente (1958)
A hipótese carnal de deusa sexual. Tudo é perfeito: os jogos de
sedução, a fúria contida de gata com cio, que não quer abdicar do seu
casamento, uma espécie de compaixão calculista, o sotaque de Southern Belle no
exílio. Finalmente faz da sua melíflua e quebrada voz uma arma de arremesso
para moldar, em definitivo. A sua persona gigantesca (apesar do metro e meio de
altura) de tigresa à solta. Um deslumbramento.
Bruscamente No Verão Passado (1959)
De novo, em Tennessee Williams, desta vez defrontando-se em plano de
igualdade com Katharine Hepburn, no seu papel mais complexo, até aquela data:
passa pela loucura, o desespero da incompreensão, o medo de verbalizar o que a
aterroriza, com a segurança rara de um bicho de cinema.
Cleópatra (1963)
Não há volta a dar: Elizabeth Taylor é Cleópatra, pelo modo como
transfigura a rainha do Egípto, como se apropria da história com a desvergonha
americana a banalizar o facto histórico e ironizar com o próprio mito. E, depois
que dizer da enorme influência sobre o look dos anos 60, com as pálpebras
borradas de sobra azul e a moda faraónica de trajes e adereços?
Quem tem medo de Virgínia Wolf? (1966)
Aproveitando a sua decadência física, possui a coragem de se mostrar
nos antípodas absolutos da sua virginal imagem de origem: uma matrona velha e
letal que faz suas as réplicas terrivelmente luciferinas da pela de Edward
Albee. Mais actriz do que estrela, sacrifica tudo à monstruosidade da
personagem. Aguenta como poucas o fariam os grandes planos dissolventes da
câmara, num filme brilhante, com a coragem de rejeitar a cinematização fácil,
proferindo uma espécie de gélido teatro filmado.
Reflexos num Olho Dourado (1967)
Porventura o seu último grande filme. Menos interveniente do que em Virgínia Wolf, revela em pleno como sabe ouvir, olhar, perturbar sem excessos
de histrionismo ou verbalização. Misto de megera e vítima indefesa, de ira e
serena submissão. Pena que Monty Clift tenha morrido antes de poder contracenar
com ela uma última vez. Brando faz o que pode, mas Clift teria dado a perfeita
contracena e a vulnerabilidade necessária à personagem.
Fonte: Jornal Público 24 Março de 2011
Texto: Mário Jorge Torres
Fotos da net
CarlosCoelho